O jornalista Leonardo Ferreira, natural do Rio de Janeiro (RJ), é formado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, pós-graduado em Gestão Comercial & Marketing Digital, pós-graduado em Transtorno do Espectro Autista: Inclusão Escolar & Social, além de membro do Templo Beth-El of Jersey City (www.betheljc.org). O templo foi fundado no estado de New Jersey (EUA), em 1864.
20 de agosto de 2010
19 de agosto de 2010
IDENTIDADE RACIAL BRASILEIRA: O MITO DA HARMONIA ÉTNICA NACIONAL
ESTUDANTES "MULATOS" NA COLÔMBIA
O antropólogo norte-americano Marvin Harris estava intrigado. Afinal qual era exatamente a cor de uma pessoa acastanhada? Ou alviescura, amarelada, alvirrosada? Passava os olhos pela lista divulgada nos anos 70 pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnud), na qual os entrevistados declaravam a própria cor. Eram incríveis: alvarenta; alvarinta; alvinha; amarela; amarelo-queimada; amarelosa; amorenada; avermelhada; azul; baiana; bem-branca; avermelhada; branco-melada; branco-morena; branco-pálida; branco-queimada; branco-sardenta; branco-suja; branquinha; bronze. Estava estudando uma população no interior da Bahia. Ali, lançou uma questão que até hoje reverbera em solo nacional: who are white? (quem é branco?).
Para conseguir a resposta, teve que se investir de uma percepção refinada e um olho descondicionado – ajudava o fato de não ter nascido na terra dos múltiplos coloridos. A quantidade de declarações sobre a cor da pele mostrava que, mesmo em um Estado com alto índice de negros e mulatos como a Bahia, a população simplesmente não conseguia se dizer “branca” ou “negra”. Harris foi seguindo a trilha dessa multiplicidade de tons e percebeu que a cor estava claramente atrelada ao sucesso social de seu dono. Chegou a uma conclusão surpreendente, formulando assim um instigante esquema. Ele nos diz: um negro é um branco muito pobre; um mulato muito pobre; um mulato pobre; um negro muito pobre; um negro pobre; um negro medianamente rico. Já um branco é: um branco muito rico; um branco medianamente rico; um branco pobre; um mulato muito rico; um mulato medianamente rico; um negro muito rico.
É, sem dúvida, uma forma mais eficaz para lidar com a questão racial no País: ela não se localiza apenas no fenótipo, na aparência, mas perpassa também pela classe social do indivíduo. Significa dizer que o racismo no Brasil manifesta-se pelo branqueamento daqueles que agregam diferentes status e, ao contrário, o enegrecimento ou empardecimento daqueles sem prestígio social. Os psicólogos Marcus Eugênio Lima (Universidade Federal da Bahia) e Jorge Vala (Universidade de Lisboa) se muniram da análise de Harris para tentar decifrar essa rede complexa – e, por isso, nem sempre muito visível no trato cotidiano. “Estamos diante de um racismo camaleônico, que utiliza o notável caleidoscópio de cores que compõem a sociedade brasileira para construir um tipo de representação social que associa o fracasso à cor negra e o sucesso à cor branca. Essa forma brasileira de racismo pode fazer mudar subjetivamente a cor de um indivíduo a fim de manter intactas as crenças coletivas e as atitudes negativas associadas à categoria de pertença desse indivíduo.”
A cor também está veiculada àquilo que é associado ao que é negativo (preto) ou positivo (branco). A pesquisa empreendida pelo sociólogo Sérgio Adorno a partir dos boletins de ocorrências de crimes violentos em São Paulo durante os anos 90 traz uma assustadora conclusão: se o réu era inocentado pelas evidências, tornava-se “branco” nos registros. Já aqueles cujas evidências apontavam para a culpa eram descritos, mesmo tendo a pele clara, como “morenos” ou “negros”. Mas foi o vice-presidente do Instituto Cidadania Democrática (ICD/SP), Silvio Luiz de Almeida, quem conseguiu responder mais sucintamente à pergunta do assombrado Marvin Harris. Ao estudar o acesso à universidade e a emancipação dos afro-brasileiros, ele afirma: ser “branco”, no Brasil, não se refere apenas à cor da pele, mas a todo um conjunto de atitudes e de privilégios políticos e econômicos que nossa sociedade atribui aos que possuem uma aparência branca. E essa apar ência, como sabemos, pode ser construída de diversas maneiras, seja através do sucesso econômico, político, cultural. A falta de privilégios, por sua vez, confere simbólicos pigmentos, uma melanina brasileiríssima.
É por isso que são quase negros brancos como Maria José, que vive no quilombo do Castainho, em Garanhuns; o menino louro Esdras Gomes, morador dos alagados da Camboa, em Serrambi, aonde chegavam os navios repletos de escravos; as irmãs Jéssica e Gislaine, que moram à beira de um esgoto na Vila Massangana, a poucos metros do engenho onde Joaquim Nabuco viveu até os 8 anos de idade. São quase negros também a ex-prostituta e traficante Luciana, assim como o ex-presidiário Tomás, rapaz de olhos verdes que possui o mesmo nome do primeiro réu defendido por Nabuco. O Tomás de ontem era um negro fugitivo. O Tomás de hoje, um quase negro que tenta uma vaga no mercado de trabalho. Alguns deles passaram fome, outros pela falta de lugar para morar, pelo drama do abuso sexual. São desempoderados de pele alva, vivenciam uma existência de alto risco que os aproxima da maioria daqueles que passam pelo mesmo diário sufoco, os negros.
Há entanto, apesar do “enegrecimento social”, um capital com o qual todos estes claros podem contar e que os diferencia substancialmente dos pretos pobres: a brancura da própria pele. Mesmo sofrendo as dificuldades da falta de emprego, renda, moradia e saúde, eles conseguem, na rua, a olho nu, diferenciar-se positivamente. Aproximam-se, visualmente, da maioria daqueles que compõem as fatias economicamente mais privilegiadas do País, vide o ótimo trabalho do economista Marcelo Paixão, que criou para a Organização das Nações Unidas, em 2005, um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) com recorte racial para mostrar a brutal diferença de existências no País. Se apenas o IDH dos brancos fosse levado em consideração, o Brasil ocuparia a 44ª posição entre os 174 países listados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Se apenas o IDH dos negros fosse listado, o Brasil iria parar no 105º lugar. São 61 posições de diferença.
Assim, estes brancos são donos da cor, mas não da realidade, da elite econômica do País. Por isso, quase negros. Quase porque, no cotidiano, têm menos chances de, por exemplo, serem abordados pela polícia. “Baculejo” em branco, mesmo pobre, é mais difícil. Eles são mais “raros” neste estrato: dos 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, 70% são negros. Na entrevista para conseguir emprego, são eles os mais cotados para dar conta do item “boa aparência”, um dos filtros que mantêm a população negra afastada dos postos de trabalho. “Quando as pessoas olham uma criança branca pedindo na rua, comovem-se com mais facilidade, chama atenção, ‘olha, coitado, tão bonitinho, tem os olhos azuis’. Porque aquele não é o lugar para aquela criança, aquele é o lugar para o negro, é sempre ele que aparece nesta situação”, diz a professora Eliane Veras, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade F ederal de Pernambuco (UFPE). O capital da cor, única riqueza dos brancos pobres, também foi observado pelo antropólogo Kabengele Munanga, professor do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Ao defender o sistema de cotas nas universidades brasileiras, ele afirma: não há como tratar, falando de políticas públicas numa cultura e sociedade racista, igualmente os negros pobres e os brancos pobres, já que os primeiros são discriminados duas vezes, pela cor e pela condição socioeconômica, enquanto os últimos são discriminados uma única vez. Aqui, ressalta, não é possível acreditar em democracia racial: é preciso tratar tais grupos como profundamente desiguais (de acordo com o Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil 2007/2008, 4.027,710 brancos cursavam até 2006 o nível superior no Brasil, enquanto apenas 1.757,336 pretos e pardos acessaram o mesmo nível).
Enquanto a alvura pode livrar estes quase negros de alguns constrangimentos, a pobreza os mantém distintos, como aponta o cientista político Gustavo Venturi, da Fundação Perseu Abramo. Segundo ele, os pobres não negros não deixam de ser discriminados como pobres. E essa discriminação é provocada pelo próprio contexto social no qual, cada vez mais, o poder é traduzido na aquisição de bens materiais. “Essa experiência advém de um enraizamento cultural profundo de valores derivados de uma estrutura de classes historicamente muito desigual, valores que se expressam no menosprezo do trabalho braçal, que antes cabia aos escravos e depois se sustentou na abundância de mão de obra barata, desqualificada pela falta de oportunidade de estudo e de formação profissional. A discriminação contra pobres no Brasil alimenta-se também da exacerbação dos valores consumistas da nossa sociedade, que sobrevaloriza a aparência, traduzida em vestuário e adereços cons iderados símbolos de beleza e de sucesso. Em que pese a melhoria da distribuição de renda nos últimos anos, é evidente que essa lógica segue expondo milhões de brasileiros à discriminação social pelo simples fato de serem pobres.”
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SERVIÇO
Fontes: Atlas Racial Brasileiro (2004); Relatório de Desenvolvimento Humano Brasil (2005): racismo, pobreza e violência (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento/Pnud/ONU); Políticas de ação afirmativa em benefício da população negra no Brasil: um ponto de vista em defesa de cotas (Kabengele Munanga/USP); Normas sociais e racismo: efeitos do individualismo meritocrático e do igualitarismo na infra-humanização dos negros (Marcos Oliveira Lima e Jorge Vala); Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil 2007/2008 (Laeser/UFRJ)
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