20 de fevereiro de 2020

JUDEU FAZ CIRCUNCISÃO EM MUÇULMANOS - ARTIGO DA FOLHA DE SÃO PAULO DE JULHO DE 1995


Segundo alguns historiadores, a origem da circuncisão data de,  aproximadamente, 3 mil anos antes da Era Comum (A.C.)

A tradição milenar da circuncisão se repete semanalmente em São Paulo representando uma metáfora, às avessas, do conflito entre árabes e judeus. A circuncisão é o corte de parte do prepúcio, pele que envolve a glande do pênis.
Quebrando o estereótipo que só existe ódio entre os dois povos, o "mohel" (circuncidador, em hebraico) Fernando Marsella, 33, judeu, atende crianças muçulmanas. Poucos sabem, mas os seguidores do islamismo, assim como os judeus, mantêm ainda hoje a tradição de circuncidar seus meninos.
Paulistano dos Jardins (zona oeste), Marsella estudou 8 anos em Israel para ser um "mohel".


Pela tradição oral judaica, Deus criou o primeiro homem, Adão, sem prepúcio

"Um dia, em 88, quando voltei para o Brasil, recebi o telefonema de uma senhora perguntando pelo `Taher', que quer dizer circuncidador, em árabe", lembra ele.

Ela explicou que o "mohel" havia sido indicado por um médico pediatra judeu.

"Meu nome se espalhou de boca em boca e, desde então, atendo muçulmanos todas as semanas", diz.

Marsella não surpreende apenas por circuncidar os filhos do islã.
Contrariando as rígidas leis religiosas judaicas, ele também atende filhos nascidos da união de pais judeus e mães que foram, ou não, convertidas para a religião.

Sua atuação heterodoxa já trouxe problemas para o "mohel".
Espalha-se na comunidade judaica paulistana que ele não tem diploma de circuncidador e, ainda, que ele nem seria judeu. Marsella já perdeu clientes.
Durante as duas últimas semanas, a Folha acompanhou o trabalho de Marsella. Ele apresentou seu diploma de circuncidador, que é certificado por Mordechai Eliahu, chefe do rabinato de Israel.

Em um apartamento no Brás, no dia 4 de julho, ele circuncidou Rhanni Samir Asad Ghani, 1, neto de imigrantes palestinos. Na quarta-feira passada, foi a vez de Gabriel Peres, de oito dias, filho do judeu Nathan Peres, 23, e da católica Ivani Sampaio, 26. A cerimônia aconteceu em um bar.

. Na marra:

O encontro pacífico entre judaísmo e islamismo acontece no Brás (região central da capital paulista). Marsella caminha na rua Oriente entre Assad Abdelghane, de 54 anos, e Jauad Mustafa, de 55 anos, respectivamente avô paterno e materno de Rhanni. No caminho, os dois muçulmanos lembram da infância, em uma aldeia da Palestina.

"Quando o 'mohel' chegava, com uma mala igual a do Fernando, todas as crianças saíam correndo, era o terror", diz Abdelghane. "Fazer a circuncisão é considerado um favor para a criança. O 'mohel' não precisava nem pedir para o pai. Pegava a gente, falava 'olha o passarinho', e cortava".

Ao chegarem no apartamento de Mustafa, o pequeno Rhanni brincava com a mãe, Iman, de 25 anos. O menino já anda e fala algumas palavras. Depois de tomar um xarope para dormir, ele é deitado sobre cobertores na mesa de centro da sala. Começa a operação. Rhanni está agitado e não dorme. Marsella aplica uma anestesia local na região da pélvis. A criança chora de dor. Os avôs seguram as pernas. A mãe prefere ficar na cozinha.

Rapidamente, o "mohel" prende parte do prepúcio com um instrumento tradicional chamado Maguen (escudo, em hebraico), que protege a glande do bisturi. Em seguida, acontece o corte de um anel do prepúcio e a glande fica descoberta. É feito um curativo. Não é necessário dar pontos. Em menos de dois minutos, já no colo da mãe, a criança parou de chorar.

"Não fui eu não, foi ele", diz Abdelghane, olhando para o neto Rhanni e apontando para Marsella. Todos estão emocionados na sala.

Segundo os avôs muçulmanos, os árabes e judeus passaram a se odiar em 1948, quando a criação do Estado de Israel tirou terras que pertenciam aos palestinos.

"Há milhares de anos nós convivíamos muito bem na região da Palestina, somos povos primos, descendentes de Abraão", diz Mustafa. Ele lembra que, quando era criança, também eram judeus que faziam a circuncisão. "Eles têm uma tradição maior de formar circuncidadores", diz.

Para eles, não há problema em um judeu fazer a circuncisão do neto. "Ele é como um médico", explica Adbdelghane.

O muçulmano ainda destaca vantagens do "mohel". 

"Liguei para uma clínica para saber o preço de uma operação como essa. Entre o anestesista, o médico e o aluguel da sala, eles queriam US$ 2 mil", diz. 

"Além disso, os médicos nunca fazem tão bem quanto um 'mohel"', completa.

Segundo alguns historiadores, a origem da circuncisão data de,  aproximadamente, 3 mil anos antes de Cristo. Pela tradição oral judaica, Deus criou o primeiro homem, Adão, sem prepúcio. Quando Adão e Eva cometeram o pecado original (tiveram relações sexuais), Adão teria ficado envergonhado por não ter cumprido a ordem de Deus de se manter puro.

"Então, Deus deu pele ao homem para que ele cobrisse sua vergonha", diz Marsella. Os religiosos interpretam a "pele" como o prepúcio e a "vergonha", como o pênis.

Quando o menino judeu é circuncidado, é feito entre ele e Deus a "Brit Milah", ou pacto da aliança, que representa a união entre Deus e o povo de Israel.
Entre os muçulmanos, a tradição religiosa não é tão forte. 

"É uma tradição do nosso povo mais ligada à questão da higiene e da limpeza. O rapaz deve ser circuncidado antes de praticar o primeiro ato sexual", diz Ahmad Faifi, diretor do Centro de Divulgação do Islã de São Paulo.

Circuncisão, em árabe, é "Tuhur", palavra que também significa "limpeza".

O rabino Henry I. Sobel (falecido na Flórida em 22 de novembro de 2019), presidente do rabinato da Congregação Israelita Paulista (CIP), confirma a existência dos boatos sobre Marsella.

"Algumas pessoas dizem que ele não tem diploma, outras, que ele nem é judeu. Eu não sei. Em dúvida, deixei de recomendar os serviços do Fernando", diz Sobel.

Apesar do distanciamento, o rabino afirma que ``admira a competência profissional" de Marsella.

Sobre o fato do "mohel" fazer a circuncisão de crianças muçulmanas, Sobel diz que "é estranho".


Quando o menino judeu é circuncidado, é feito entre ele e Deus a "Brit Milah", ou pacto da aliança, que representa a união entre Deus e o povo de Israel

. Na mesa do bar:

Às 9h da manhã da última quarta-feira, um grupo de cerca de 20 rapazes, e algumas moças, se reuniu no bar "Sub Zero". Ia começar a circuncisão de Gabriel. Estavam na cerimônia apenas os amigos do casal. Filho de uma família de judeus tradicionais, Nathan não quis causar embaraço aos pais, convidando-os para a circuncisão do filho que, pela tradição religiosa, não é um judeu.
Pela lei judaica, só é judeu aquele que nasceu do ventre de uma mãe judia ou se converteu. Ao comentar o assunto, Peres bate com a mão na veia do braço e diz: "Eu sou judeu de sangue, e meu filho também é, não importa que minha mulher não seja".

Marsella diz "rir" de quem afirma que ele não é judeu. 

"O rabino chefe de Israel nunca daria um diploma de `mohel' para alguém que não fosse judeu", responde.

A circuncisão de Gabriel é rápida. O pai e o padrinho rezam com o "mohel" em hebraico: 

"Bendito seja Deus, rei do universo, que nos ordenou a circuncidar os nossos filhos".

Os amigos usam solidéus, os pequenos chapéus tradicionais. Alguns cobriam a cabeça com lenços ou mesmo com guardanapos de papel. No final, todos gritaram: "Mazal tov!!", ou "boa sorte!!", em hebraico.

. Fonte:

Luis Henrique Amaral - da reportagem local

Folha de São Paulo - Cotidiano

São Paulo, domingo, 16 de julho de 1995

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/7/16/cotidiano/22.html




 

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