Judeus soviéticos desembarcam no Aeroporto Ben Gurion, Israel, em avião da companhia El Al, em janeiro de 1990
por Zevi Ghivelder
No dia 15 de junho de 1970, onze judeus soviéticos capturaram um avião no aeroporto de Leningrado. Pretendiam voar para a Suécia e de lá para Israel. Foram presos e no dia 28 de dezembro do mesmo ano, sentenciados a longas penas. Este julgamento foi o estopim de um protesto que transformou o Mundo Judaico e o Estado de Israel.
A vida dos judeus na Rússia e na União Soviética foi marcada por muitos séculos com sangue e lágrimas. A repulsa aos judeus está entranhada na alma russa desde o século 11, quando se constituiu a Igreja Ortodoxa Russa que consagrou nos respectivos cultos apenas o Novo Testamento e, portanto, ignorou as raízes bíblicas do Povo Judeu, acusado para sempre como “responsável pela crucificação de seu Senhor”. É um sentimento que perdurou por 2 mil anos e até hoje permanece vivo.
O antissemitismo russo se intensificou a partir do século 19 com uma horrenda sucessão de pogroms (matanças) que primeiro tiveram como alvos aldeias com maioria de população judaica e depois se estenderam até cidades como Kishinev, em 1903, e Kiev, em 1919, ambas na Ucrânia. A matança em Kiev foi particularmente dolorosa para milhares de judeus que, impregnados pelo nacionalismo e pelo marxismo emergente da 1ª Guerra Mundial, acreditaram que uma sociedade igualitária significaria sua aceitação na sociedade.
Reproduzo, a seguir, um texto já publicado nestas páginas (Morashá, no. 78) que expõe de forma sucinta a traição dos bolcheviques aos judeus.
No início da revolução soviética, foi o judeu Leon Trotsky, cujo verdadeiro sobrenome era Bronstein, quem assumiu as rédeas do país ao lado de Lenin. Somente meses mais tarde, ao ocupar um posto menor no novo governo, o georgiano Iossif (depois Joseph) Vissarianovitch Ivanovitch Djugashvili, autodenominado Stalin, criou um departamento que deu origem à Yevsektzia, braço judaico do Partido Comunista.
De dezembro de 1918 a agosto de 1919 coube a este órgão a bem-sucedida missão de abolir nas escolas judaicas o ensino do idioma hebraico, proibir as lições religiosas, suprimir qualquer manifestação de caráter sionista e eliminar todas as instituições judaicas tidas como incompatíveis com o marxismo. Cumprida a tarefa, Stalin escreveu um artigo para uma publicação soviética, no qual afirmou: “As massas judaicas agora têm sua pátria-mãe socialista que está sendo defendida ao lado dos trabalhadores e camponeses russos contra o imperialismo ocidental e seus agentes. A questão judaica não mais existe na Rússia soviética. Os trabalhadores judeus e as massas operárias doravante possuem direitos civis e nacionais”. E a última frase, uma síntese da falsidade: “A cultura judaica não mais encontra obstáculos para o seu desenvolvimento”. A maioria dos judeus se deixou iludir por tais declarações, mesmo porque era espantosa a quantidade de judeus detentores de importantes cargos no primeiro escalão do governo: Trotsky, Zinoviev, Sverdlov, Kamenev, Radek, Kaganovitch, Litvinov, Yoffe e muitos outros em posição de destaque.
Depois de centenas de milhares de judeus terem lutado no Exército Vermelho durante a 2ª Guerra Mundial, os anos subsequentes lhes foram terríveis com uma breve pausa. Esta aconteceu em 1947 quando a União Soviética se colocou vigorosamente a favor da causa sionista, com um célebre e inesperado discurso pronunciado por seu embaixador, Andrei Gromyko, e votou a favor da partilha da Palestina nas Nações Unidas. Aquilo que parecia um endosso soviético ao Sionismo, era na verdade uma estratégia de Stalin destinada a eliminar a presença britânica no Oriente Médio.
Em outubro do ano seguinte a opressão contra os judeus russos foi intensificada a partir da conturbada chegada de Golda Meir a Moscou, como embaixadora do recém-criado Estado de Israel.
Os líderes comunistas não conseguiam acreditar no que se desenrolava perante seus olhos: uma multidão de cerca de cem mil judeus havia se deslocado até o aeroporto de Moscou para saudar a vinda da embaixadora. As autoridades nãose conformaram que30 anos depois da revolução bolchevique, a população judaica da Rússia soviética, calculada em três milhões de pessoas, não tivesse total e irrestrita fidelidade ao país em que vivia.
Trinta meses depois, uma equipe israelense de basquete desembarcou em Moscou para disputar um torneio internacional. Na saída do terminal do aeroporto, o ônibus que conduzia os jogadores foi cercado por uma multidão de judeus que aclamava os rapazes do time e gritava em hebraico “No ano que vem, em Jerusalém! ”. Dessa vez, porém, o regime já sabia como agir. A equipe de Israel deveria fazer a primeira partida no estádio X que, na última hora, foi transferida para o estádio Y para evitar o público judaico que, decerto, lotaria a arquibancada. O mesmo aconteceu no jogo seguinte, com igual troca de estádios. Os donos do poder assim se contentaram em varrer a repressão para debaixo do tapete.
Para todos aqueles acontecimentos a resposta soviética foi cruel. Em 1952, a elite dos escritores e poetas judeus foi acusada de crimes inexistentes e rotulada com o selo mais estigmatizante e impiedoso: eram cosmopolitas, seja lá o que isso pudesse significar. Uma dezena de escritores e poetas foram executados. No ano seguinte, a caça aos judeus teve como alvo um grupo dos melhores médicos do país, ativos em Moscou, acusados de conspirar para envenenar os dirigentes do Partido Comunista. Também foram assassinados. Stalin morreu em março de 1953, mas isso não significou o arrefecimento do antissemitismo. Qualquer judeu que tivesse – e havia milhares que tinham – um parente nas Américas ou na Europa era tachado de cosmopolita e isso trazia consequências que se estendiam desde maus-tratos e prisões até deportações para a Sibéria. Prevaleciam o pânico e o pavor.
Um irmão da minha avó materna, Liova, era residente de Leningrado, atual São Petersburgo. Apesar de ter chegado ao posto de coronel-médico do Exército Vermelho ficou marcado por causa de um pacote com presentes de ínfimo valor que minha mãe lhe enviou pelo correio. Jamais conseguiu obter das autoridades um apartamento pouco maior do que o quarto e sala onde vivia com a mulher e a filha, dividindo o banheiro e a cozinha com outras cinco famílias.
Outra irmã, Sarah, emigrou em 1931 da Bessarábia para São Paulo, onde se casou com o engenheiro elétrico Eduardo Annenberg, natural de Odessa. No início dos anos de 1950, obter um visto de turista para a União Soviética correspondia a uma proeza que acabou sendo alcançada por um casal paulista de judeus que Eduardo conhecia. Informou um endereço em Odessa, que talvez ainda fosse o de sua da mãe, com a qual tinha perdido contato por causa da guerra. Pediu apenas que o casal a procurasse e lhe dissesse que ele estava vivo e bem, trabalhando em São Paulo. Os amigos encontram a dita senhora no endereço fornecido, mas a mulher demonstrou enorme temor ao ter que falar com estrangeiros e bateu a porta com uma só frase: “Eu nãotenho nenhum filho chamado Eduardo”.
Mas, enquanto os judeus soviéticos estavam submetidos a uma letargia com relação à sua ancestralidade nacional, os judeus de todas as partes do mundo não os tinham abandonado. Nos Estados Unidos começou a ganhar corpo o movimento Let my people go, deixe meu povo sair, a conclamação feita por Moisés ao faraó do Egito. Em 1962, foi realizado no Hotel Glória, no Rio de Janeiro, um seminário com dois dias de duração, focado na questão judaica na União Soviética, presidido pelo escritor e pensador Alceu Amoroso Lima com a participação de expressivos intelectuais brasileiros. O encontro resultou numa petição pela liberdade dos judeus russos, entregue ao então presidente João Goulart que a encaminhou para Moscou.
A partir de 1960, em função de pressões internacionais, para as quais o Kremlin, apesar de todo o seu poder, era sensível, os soviéticos começaram a permitir que judeus e não-judeus solicitassem vistos de saída. Mesmo cientes de que poderiam sofrer retaliações, as pessoas se arriscavam e preenchiam infindáveis papéis burocráticos, nos quais se comprometiam a deixar o país praticamente com apenas a roupa do corpo. Um jovem judeu chamado Vladimir Slepak enfrentou a situação e cumpriu todas as formalidades. O visto de saída foi recusado. As autoridades alegaram que, como ele era engenheiro e havia trabalhado em diversas fábricas produtoras de materiais sensíveis, poderia transferir segredos industriais para o Ocidente. Ele insistiu e sete anos depois foi bem- sucedido.
Outros milhares de judeus russos pediram vistos e a maioria foi indeferida. Por isso passaram a se autodenominar refuseniks, algo como recusados ou rejeitados. Esses refuseniks foram se multiplicando com incrível rapidez e volume. Hoje, visto em perspectiva, se constata que eles deixaram para o mundo o legado de uma coragem sem paralelo. Sabiam que enfrentariam um futuro sombrio só por assinar aqueles formulários. Como consequência, perderam os empregos e não puderam ter outros porque o Estado era o único patrão. Mesmo com alta qualificação profissional, muitos se conformaram em trabalhar, por exemplo, como varredores noturnos de ruas, porque se não tivessem nenhum trabalho seriam acusados de parasitas e levados às prisões. O caso de Yossef Begun é emblemático. Matemático de fama internacional, também dava aulas clandestinas de hebraico. Quando pediu o visto para emigrar para Israel, perdeu o emprego e foi deportado para um gulag (campo de trabalhos forçados) na Sibéria.Só chegou a Israel 8 anos depois.
A miséria e a humilhação a que os refuseniks estavam submetidos emocionou o mundo e impulsionou o movimento Let my people go. Judeus e não-judeus de todos os continentes passaram a ajudá-los, inclusive com remessas de dinheiro que em parte eram confiscadas pelas autoridades. Ao mesmo tempo, a luta dos refuseniks chegou às páginas da imprensa internacional com acentuado destaque. Um jornalista americano entrevistou uma refusenik que não se deixava intimidar e perguntou se ela não tinha medo de ir para a prisão. A mulher respondeu: “E onde você acha que eu estou, agora?”
No movimento em favor dos judeus soviéticos avultou a figura de um homem extraordinário, chamado Yakov Birnbaum, que a história esqueceu. Birnbaum nasceu em Hamburgo, Alemanha, em 1926. Com doze anos de idade foi resgatado do nazismo para a Inglaterra no famoso Kindertransport, ao lado de outras centenas de crianças. Completou um curso superior em Londres e, em 1964, foi para Nova York onde fundou a Liga de Estudantes Pelos Judeus Soviéticos, à frente da qual organizou manifestações de tal maneira ruidosas que chegaram a impressionar os ativistas americanos em luta pelos direitos civis.
Essas manifestações aconteciam em diversos pontos da cidade e, de preferência, em frente à missão soviética nas Nações Unidas. Ao longo dos anos, Birnbaum foi incansável na coleta de fundos para os refuseniks. Em dezembro de 1987, na véspera de um encontro entre Reagan e Gorbachev, mobilizou um protesto que atraiu 200 mil pessoas, a metade delas não-judeus. Yakov Birnbaum morreu pobre e abandonado em Nova York, no dia 9 de abril de 2014. A seu respeito, Nathan Sharansky, ícone dos refuseniks, declarou: “Ele foi um dos primeiros que começou a nossa luta. Sem ele, o Êxodo dos tempos modernos jamais chegaria a ser uma realidade”.
Na década de 1960, a União Soviética se havia tornado a maior fornecedora de material bélico para o Egito e a Síria, além de liderar as esquerdas do mundo numa sistemática campanha destinada a deslegitimar a existência de Israel. Apesar do rígido controle exercido sobre a imprensa, o regime soviético não conseguiu ocultar a vitória de Israel na Guerra dos Seis Dias. Esta vitória foi um rastilho que incendiou milhões de judeus russos. Era como se tivessem despertado de um torpor de centenas de anos para reencontrar suas identidades, consciências, valores e religião ancestrais. De súbito, após tantas matanças e submissões, os judeus russos ficaram extasiados com Israel, aquele pequeno e distante Estado Judeu que tinha enfrentado e derrotado três exércitos inimigos em apenas seis dias. O orgulho judaico iluminou os refuseniks que, em 1970, não tiveram medo de protestar em Leningrado contra as sentenças impostas aos 11 judeus sequestradores e que foram aclamados como heróis.
A política de concessão de vistos de saída para Israel ou outros países continuou em ritmo de conta-gotas até os estertores da União Soviética, por mais dois anos, desde a queda do Muro de Berlim até o colapso do sistema comunista.
O fim do regime soviético determinou a abertura dos até então lacrados portões da Rússia, proporcionando a emigração de mais de um milhão de judeus para Israel, um êxodo com verdadeiros contornos bíblicos, com a mesma dimensão de grandeza e de conquista humana do êxodo do Povo Judeu do Egito, três mil anos atrás.
Na história moderna inexiste outro país que tenha aumentado a sua população em 20 por cento no decorrer de uma década. O jornalista israelense Matti Friedman escreve que tem na retina o desembarque, em 1991, de mais de uma centena de imigrantes russos, ainda na escada do avião, trazendo pesadas roupas de inverno, que seriam desnecessárias em Israel e sob iminente ameaça dos mísseis Scud, que, naquela mesma hora, na 1ª guerra do Golfo, Saddam Hussein disparava contra o país que os acolhia. Outro jornalista observou, 30 anos após a chegada da primeira onda de judeus da União Soviética: “É como se em dez anos os Estados Unidos tivessem absorvido toda a população da França e da Holanda”. Houve, ainda, quem dissesse que o êxito dessa imigração era um milagre. Porém um milagre, por mais milagroso que seja,nãoacontece duas vezes e no mesmo lugar. O primeiro tinha ocorrido nos dois primeiros anos de independência, quando Israel absorveu uma quantidade de imigrantes equivalente ao yishuv, a população judaica que fincara os alicerces do novo país. A absorção dos russos não foi um milagre, mas o resultado de enorme consciência nacional, de um esforço econômico sem precedentes e de um complexo planejamento graças ao qual para os recém-chegados não faltou água, sempre escassa no país, nem tetos que os abrigassem, nem escolas para as crianças.
A adaptação de um milhão de russos em Israel foi tão única, tão insólita, tão consumada, que desafia a avaliação dos mais minuciosos antropólogos e sociólogos. Embora chamados de russos, da Rússia mesmo só emigrou um terço dos judeus, outro terço era oriundo da Ucrânia e os demais viviam em diversas repúblicas soviéticas, com destaque para a Geórgia. Todos estes, ao mesmo tempo em que se tornaram cidadãos israelenses integrais, souberam preservar a prática de seu idioma, sua cultura, tradições e gastronomia. Dizem os entendidos que quem quiser saborear autêntica comida russa, deve se dirigir aos restaurantes da cidade portuária de Ashdod, ao sul de Tel Aviv, também conhecida como “pequena Moscou”, onde se come o melhor pão preto e salame do planeta.
Não houve um choque entre a sociedade já existente e a que lhe foi acrescida. Pelo contrário, houve uma complementação e um enriquecimento nos meios de comunicação com a impressão de publicações em cirílico, além de programas de rádio e de televisão falados em russo. Contribuiu principalmente para tal sucesso o engajamento no serviço militar dos jovens à medida que iam completando 18 anos de idade. Na verdade, os imigrantes jovens tiveram um papel fundamental no processo de assimilação ao novo país. Casais jovens acreditaram no futuro e não hesitaram em ter filhos, proporcionando considerável aumento demográfico. Alguns cientistas políticos julgam que essa geração, nascida no início dos anos de 1990, será a elite política, científica e intelectual de Israel por volta de 2035. Por ora, muitos deles, que estão na casa dos 19 aos 29 anos,jáse tornaram celebridades como pop stars, atores e músicos. A par disso, como até agora só se passaram 30 anos, ainda está para ser escrita a história de como médicos e enfermeiras russos se tornaram um pilar no sistema de saúde de Israel; como engenheiros, matemáticos, físicos e pesquisadores científicos obtiveram conquistas tecnológicas que situaram Israel como o país mais inovador do mundo.
No início dos anos de 1990, o establishment político de Israel se dividia em duas correntes majoritárias: o partido trabalhista e o conservador, ou esquerda e direita como agora se prefere, inclusive com rotatividade no poder. Os novos imigrantes não tinham a mais remota intimidade com a democracia, mesmo porque nos últimos mil anos a Rússia não tinha experimentado um só dia sem tirania. Eles tinham, sim, o mais profundo horror ao regime comunista, com justa causa. Em pouco tempo os judeus russos apreenderam os meandros do regime democrático, ignoraram a esquerda e se voltaram para a direita, causando um impacto espetacular no espectro eleitoral israelense. Assim, robusteceram o Partido Likud, então liderado por Ariel Sharon, já admirado como o herói e salvador de Israel desde a Guerra do Yom Kipur, em 1973, que também havia mobilizado e dado ânimo aos refuseniks. A invalidez de Sharon em 2008 e morte seis anos depois propiciaram a ascensão política de Binyamin Netanyahu, que conta com boa parte do eleitorado russo.
Mas, nem tudo são flores. Os imigrantes russos enfrentaram – e continuam enfrentando – um sério problema em Israel. Conforme a Halachá, o conjunto das leis judaicas, um judeu, homem ou mulher, deve ser necessariamente filho de mãe judia. Na massa de imigrantes, cerca de 30% dos casais eram constituídos por casamentos mistos ou pelo homem ou a mulher convertidos de forma duvidosa, não reconhecida pelo judaísmo, com raras exceções. Apesar de a primeira lei vigente em Israel ter sido a Lei do Retorno, segundo a qual qualquer judeu que se radicasse no país teria direito a imediata cidadania, aquela parte dos imigrantes em conflito com a Halachá ainda batalha para regularizar sua condição legal. Nos últimos anos as autoridades religiosas têm sido mais flexíveis em função da mobilização da sociedade e os israelenses têm a esperança de que a situação encontre um caminho para ser resolvida.
Integra esse movimento Nathan Sharansky, o mais proeminente, o gigante dos refuseniks. Anatoli Sharansky nasceu na Ucrânia, então pertencente à União Soviética, no dia 20 de janeiro de 1948 e se formou em matemática no Instituto de Física e Tecnologia de Moscou. Foi cativado pela luta em favor dos direitos humanos quando atuou como intérprete para o idioma inglês dofísico Andrei Sakharov, incansável opositor do regime, alvo de cruel e constante perseguição promovida pelo Kremlin. Em 1973, sensibilizado pela Guerra doYom Kipur, pediu um visto para Israel, negado, conforme soube, “por motivos de segurança”. Isto fez com que se aproximasse dos refuseniks e se tornasse um dos mais combativos ativistas do movimento. Sobre seu engajamento, anos depois escreveu: “Em poucas semanas eu me senti conectado com meus irmãos judeus soviéticos e, mesmo longe, conectado com meus irmãos israelenses e com os judeus de todas as partes do mundo”. Registrou em outra publicação: “Na solicitação de vistos havia uma brecha legal que permitia a reunificação de famílias, mas os judeus tinham medo de apontar a existência de parentes no exterior. Além disso, as autoridades abarrotaram os pedidos de vistos de saída com tormentosas exigências burocráticas, pensando que isto levaria os judeus a desistir da solicitação. Ficaram assombrados quando, apesar de tanto aparato, os pedidos dobraram”.
A proeminência de Sharansky o levou à prisão em 1977. No interrogatório a que foi submetido, não se intimidou perante os inquisidores da KGB e lhes disse: “É uma afronta me dizerem que estou contra o povo e a cultura da Rússia. Por acaso imaginam que Dostoievsky e Tolstoi estejam do lado de vocês? Eles estão do meu lado! ”. No ano seguinte, acusado de traição e de espionagem em favor dos Estados Unidos, foi condenado a 13 anos de encarceramento num gulag da Sibéria. Naquela altura, Sharansky já era um nome internacionalmente conhecido e admirado como porta-voz dos refuseniks. Petições por sua liberdade começaram a ser entregues em dezenas de embaixadas da União Soviética. Mais uma vez o Kremlin sentiu o golpe e, num esforço de relações públicas, começou a permitir que cientistas, matemáticos, músicos e outros artistas judeus viajassem para o Ocidente e comparecessem a entrevistas coletivas da imprensa. Eram os chamados “judeus oficiais” que, em troca de privilégios, se prestavam àquele desprezível papel. Anos depois, Sharansky escreveu: “De nada adiantou. O mundo percebeu que somente as nossas vozes eram sinceras”.
No dia 9 de fevereiro de 1986, Sharansky foi libertado, por iniciativa de Gorbachev, e levado para Leipzig, na Alemanha Oriental, onde atravessou a chamada “ponte dos espiões”, lugar de troca de prisioneiros dos dois lados da Cortina de Ferro, e foi recebido no lado ocidental pelo embaixador de Israel que ali mesmo lhe entregou um passaporte israelense no qual, em vez de Anatoli, constava seu nome em hebraico, Nathan. No dia 11, foi acolhido em Tel Aviv pelo então primeiro-ministro Shimon Peres e em sua pátria sonhada começou uma bem-sucedida carreira política que cobriu desde postos ministeriais até a presidência da Agência Judaica, onde encerrou a carreira de homem público para se dedicar à literatura.
Há um momento especialmente significativo na saga de Sharansky. Na Sibéria, quando foi aberta a porta da cela que o detinha, ele caminhou para a liberdade levando como única bagagem seu Livro de Salmos. O guarda impediu a saída do livro e Sharansky reagiu: “Então volto para a cela. Sem meu Livro de Salmos, não vou”. Foi com esse livro embaixo do braço que Nathan Sharansky desembarcou em Israel.
. Bibliografia:
Sharansky, Nathan, “Never Alone”, Public Affairs, EUA, 2020.
Sharansky, Nathan, “Não Temerei o Mal”, Best-seller, Brasil, 1988.
Friedman, Matti, “Israel’s Russian Wave”, Mosaic, novembro 2020.
Kosharovski, Iuli, “We Are Jews Again”, Syracuse University Press, EUA, 2017.
Zevi Ghivelder é escritor e jornalista
. Fonte:
Revista Morashá - Edição 110 - Março de 2021
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