O Antissemitismo possui raízes históricas profundas
Ícone global da democracia e destino histórico da busca por liberdade religiosa, os Estados Unidos testemunham o avanço do antissemitismo, alimentado, como de hábito, por teorias conspiratórias, impulsionadas com mais intensidade na era das redes sociais. O número de eventos antissemitas em 2022, com aumento de 36% em relação ao ano anterior, atingiu seu patamar mais alto desde 1979, início de monitoramento feito pela Liga Antidifamação.
Conhecida internacionalmente como ADL, sigla em inglês, a organização não-governamental norte-americana, com sede em Nova York, contabilizou 3.697 ações antissemitas, entre violência, assédio e vandalismo. A cifra, nos últimos cinco anos, bateu recordes três vezes.
Outra entidade judaica, o AJC - Comitê Judaico Norte-americano, registrou uma preocupação crescente em suas pesquisas anuais: 41% dos entrevistados em 2021 se disseram mais inseguros do que no ano anterior, um aumento de dez pontos percentuais em relação à última enquete. Indagados se consideravam o antissemitismo um problema nos EUA, 89% responderam afirmativamente e 82% apontaram agravamento da situação nos últimos cinco anos.
A ideologia antijudaica espalha tentáculos em meio a um aumento dos crimes de ódio no país. O FBI verificou, em 2021, expansão de 12% nesse tipo de delito.
Os Estados Unidos navegam por um momento desafiador de sua história, ao enfrentarem consequências da crise financeira de 2008-9, mudanças demográficas profundas e o crescente desafio desenhado pelo surgimento de um cenário global multipolar, no qual despontam potências ascendentes, como China e Índia.
No plano social, a crise financeira de 2008-9 escancarou o empobrecimento de um setor da classe média norte-americana, dependente de trabalhos nas indústrias que migraram sobretudo para países asiáticos nas últimas décadas. O fechamento de fábricas levou à perda de empregos e de renda para uma parcela da população que prosperara nos tempos dourados da industrialização norte-americana, em particular no pós-2ª Guerra Mundial.
Essa classe média empobrecida, geralmente mais conservadora e mais religiosa, também convive com a mudança do tecido social dos EUA, cada vez mais multiétnico e multilinguístico, com o avanço, por exemplo, da imigração hispânica a partir dos anos 1970.
Também há a diluição do status global dos Estados Unidos, ainda a primeira economia e a máquina militar mais poderosa do planeta, mas com um status desafiado pela meteórica ascensão de Pequim e de Nova Délhi. Washington, portanto, se despede dos tempos da unipolaridade, entre 1989, fim da Guerra Fria, e 2008-9, crise financeira, quando exercia uma hegemonia global sem maiores questionamentos.
Tais turbulências e temores a agitar setores da sociedade norte-americana ampliaram espaços para a disseminação de discursos radicais, ainda impulsionados pela internet e suas redes sociais. “Temos visto o antissemitismo ser normalizado de maneiras que seriam inimagináveis poucos anos atrás”, declarou Jonathan Greenblatt, diretor nacional da ADL. “Se pessoas veem conspirações por trás de cada infortúnio, não tarda muito para que olhem aos judeus e digam que eles são o problema”.
O antissemitismo contemporâneo encontra raízes no extremismo à esquerda e à direita do espectro político, empenhado em apontar os judeus como responsáveis por mazelas atuais do cenário norte-americano. Demagogos e racistas recuperam visões conspiratórias de estilo medieval para explorar, em busca de ganhos políticos e ideológicos, temores e inseguranças a contaminarem segmentos da sociedade norte-americana num momento de profundas e aceleradas mudanças a atingirem o país e o planeta, nos planos econômico, social e geopolítico.
Apesar da democracia e da liberdade religiosa, grupos supremacistas brancos sempre mancharam a história norte-americana, como a Ku Klux Klan. No movimento antirracismo e por direitos civis liderado por Martin Luther King Jr., na década de 1960, os judeus tiveram um papel bastante ativo.
Nos últimos anos, grupos e líderes racistas voltaram a sair das sombras. Em 2017, mobilizaram passeatas em Charlottesville, na Virginia, quando ecoaram slogans como “os judeus não vão nos substituir”, em referência à teoria conspiratória de que “elites norte-americanas, manipuladas por lideranças judaicas, querem afastar a população branca, trazendo imigrantes”.
Em março, a revista britânica The Economist, porta-voz do liberalismo da direita, trouxe texto apontando preocupações com avanço do extremismo norte-americano. Segundo a publicação, em 2022, grupos supremacistas brancos organizaram mais de 40 atos e flashmobs, 25% a mais do que no ano anterior e um aumento de dez vezes desde 2017.
No âmbito da “normalização do antissemitismo” mencionada por Greenblatt, despontam, por exemplo, os deputados republicanos Marjorie Taylor Greene e Paul Gosar, participantes, por exemplo, de um evento de arrecadação de fundos liderado por Nick Fuentes, ultranacionalista e negacionista do Holocausto.
Nick Fuentes contamina a internet com discurso de ódio, e seu canal chegou a ser fechado pelo YouTube em 2020. Dois anos depois, ao lado do rapper Kanye West, dono de posições antissemitas, jantou com Donald Trump em Mar-a-Lago, na Flórida, o que detonou uma avalanche de críticas ao ex-presidente, incluindo as de Binyamin Netanyahu, Mike Pence e outras lideranças republicanas.
No Partido Democrata, extremistas de esquerda também propagam conspirações antissemitas, apontando para a globalização “como maquinações do grande capital, muitas vezes judaico, para prejudicar a classe trabalhadora”. Convivem também com o escudo do “antissionismo” para tentar escamotear o antissemitismo.
Yehudit Barsky e Ehud Rosen, pesquisadores de um think tank ligado à Universidade de Tel Aviv, publicaram estudo recente sobre a aliança “vermelho-verde”, alusão a esquerdistas e islamistas aliados em descrever o conflito israelo-palestino como “luta anticolonial”, em narrativa eivada de preconceitos e distorções históricas. As deputadas democratas Rashida Tlaib e Alexandria Ocasio-Cortez lideram grupos empenhados em disseminar ideias antissemitas.
Jonathan Greenblatt, ao discursar em Washington no mês de março, criticou reportagens do The New York Times sobre judeus chassídicos, destacou a hostilidade enfrentada por estudantes judeus em diversas universidades norte-americanas e enfatizou: “Este ano, constatamos que o aumento dramático em incidentes antissemitas não se deve a apenas uma ideologia”.
Maior comunidade judaica da Diáspora, mas menos de 3% da população dos EUA, os judeus norte-americanos se mobilizam para combater a chaga do antissemitismo no âmbito da lei, da segurança e da educação. Trata-se, na verdade, de mais um triste capítulo de uma chaga milenar, a exigir permanente ação contra o racismo e contra o preconceito.
. Fonte:
Jaime Spitzcovsky é colaborador da Folha de S.Paulo, foi correspondente do jornal em Moscou e em Pequim.
Revista Morashá - Edição 119 - Junho de 2023
http://www.morasha.com.br/antissemitismo/o-antissemitismo-nos-eua.html
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