12 de fevereiro de 2024

ADOLFO KAMINSKY: O FALSIFICADOR DE PARIS


É impossível saber-se com precisão quantas vidas ele e outros como ele que trabalhavam na Resistência Francesa, chamada na França de La Résistance, conseguiram salvar, mas estima-se que o trabalho deles tenha salvado cerca de 14 mil judeus

Judeu francês Kaminsky salvou milhares de correligionários durante o Holocausto falsificando documentos e mudando sua identidade. O fato de se ter um documento que não contivesse o carimbo “juif” ou “juive” representava a diferença entre vida e morte. Aos 18 anos de idade, ele foi um dos melhores falsificadores a resistir aos nazistas.

É impossível saber-se com precisão quantas vidas ele e outros como ele que trabalhavam na Resistência Francesa, chamada na França de La Résistance, conseguiram salvar, mas estima-se que o trabalho deles tenha salvado cerca de 14 mil judeus.

Nas palavras de Kaminsky, o Holocausto lhe ensinara que “de cada um daqueles documentos dependia a vida ou a morte de um ser humano”. Sem documentos, os judeus eram condenados à imobilidade, o que muito provavelmente era sinônimo de sua morte.

Ele e seu grupo de amigos falsificadores imitaram cédulas de identidade, cartões de racionamento, certificados de batismo, certidões de casamento, certidões de nascimento e passaportes. Esses documentos ajudaram crianças e adultos a escapar da deportação aos campos de concentração e, em muitos casos, a fugir dos territórios ocupados pelos nazistas em direção a portos seguros. Os cartões de racionamento os ajudavam a se alimentar. Documentos falsos portando nomes não-judeus e sem a palavra Juif ou Juive foram a tábua de salvação que manteve a vida de milhares de judeus.

. Sua vida:

Adolfo era filho de Salomon e Anna, judeus russos que fugiram dos pogroms. A subida ao trono de Nicolau II (1895-1918), último dos Romanovs, conhecido na história judaica como o Czar dos Pogroms, havia dado início na Rússia Imperial a mais um período marcado por extremo sofrimento judaico. Seus pais se conheceram na França, em 1916, mas após o início da Revolução de Outubro de 1917, na Rússia, ambos foram expulsos da França devido à sua ideologia declaradamente marxista. Em seu passado, eles haviam sido membros do Bund, a organização socialista dos operários judeus do Império Russo. O casal se mudou para Buenos Aires, Argentina, onde Adolfo nasceu, em 1925. De posse da nacionalidade argentina, em 1932 a família Kaminsky voltou à França. Seus pais queriam viver no “país dos direitos humanos”. O pai, que deixara de ser simpatizante dos comunistas, começa a trabalhar como alfaiate. Em 1938 a família se muda para a cidade de Vire, na Normandia, para escapar do ambiente parisiense hostil aos judeus que não eram cidadãos franceses.

Kaminsky, já com 13 anos, sonhava em se tornar um artista. Mas seus pais lutavam para se sustentar e a economia da França estava muito fragilizada. Assim sendo, após terminar o primário, Adolfo consegue um emprego em uma empresa que fabricava peças para aviação.

Em maio de 1940, os exércitos alemães atacam a França. Em junho, a França capitula e assina um armistício com a Alemanha de Hitler. A batalha pela França durou apenas 46 dias. O país é, então, dividido – o Norte, que incluía Paris, e a costa do Atlântico ficam sob ocupação nazista, enquanto o Sul e o Sudeste passam a ter um governo leal à Alemanha, o Regime de Vichy. No território sob ocupação nazista são impostas a segregação racial e a obrigatoriedade aos judeus de se identificarem como tal junto às autoridades. Em 4 outubro de 1940, o governo da Zona Livre de Vichy voluntariamente promulga leis contra os judeus: o Statut des Juifs, que se baseava nas “diretrizes” nazistas já postas em prática na zona sob ocupação alemã. Judeus são demitidos de seus empregos e Adolfo Kaminsky se vê à procura de trabalho.

Com 15 anos, o rapaz começa a trabalhar como aprendiz em uma tinturaria onde o proprietário, um engenheiro químico, ensina-lhe a remover e alterar a cor das manchas de tinta. E Adolfo aprende, também, a fazer com que tintas indeléveis desaparecessem dos mais delicados tecidos, bem como a tingir casacos de uniformes militares velhos, possibilitando seu uso por civis necessitados. Kaminsky assimila conceitos avançados de química e desenvolve um profundo conhecimento das cores e de seu tingimento; como usar os agentes apropriados para fazer com que os tecidos absorvessem ou liberassem os pigmentos das cores.

O rapaz fica tão interessado e envolvido com seu trabalho que começa a fazer experimentos com tintas e corantes até mesmo em casa – aborrecendo muito a mãe que tinha que limpar o que ele utilizava e o que ia deixando paratrás. No entanto, os conhecimentos e a habilidade que Adolfo adquiriu seriam centrais para a sua própria sobrevivência e a de milhares de seus irmãos, judeus, durante os trágicos anos do Holocausto. O rapaz também trabalhava como químico-aprendiz em uma fábrica de laticínios. Esses dois empregos lhe deram um profundo conhecimento de química.

Em 1940, sua mãe, Anna, morre em um acidente de trem que não foi bem explicado. Kaminsky acreditava que ela houvesse sido propositalmente atirada nos trilhos – durante uma viagem de volta para casa, após alertar seu irmão, em Paris, de que ele estava para ser preso pela Gestapo.

O futuro seria até mais sombrio para a família Kaminsky e os judeus da França. Em 20 de janeiro de 1942, os líderes do Terceiro Reich adotaram a “Solução Final” para a questão dos judeus na Europa ou seja, o extermínio em massa dos judeus europeus, incluindo os judeus franceses. Em 11 de novembro daquele mesmo ano, alemães e italianos invadem o território francês, ocupando a Zona Livre e quebrando o Armistício. Quando a Alemanha invadira a França, em 1940, aproximadamente 350 mil judeus viviam no país, muitos deles refugiados da perseguição nazista em outros lugares. Dos 77 mil judeus deportados da França para os campos de extermínio – a maioria para Auschwitz – apenas 2.500 retornaram.

Em 1943, Adolfo Kaminsky e sua família são agrupados a outros judeus e presos, em Vire, e enviados a Drancy. A cidade era, então, um campo de trânsito ao norte de Paris onde os prisioneiros sofriam de frio e fome e de onde a grande maioria deles eram enviados ao campo de extermínio de Auschwitz, onde poucos sobreviveram.

Kaminsky testemunhou milhares de seus irmãos judeus serem abarrotados em trens de carga a caminho de Auschwitz. “Semanalmente, via mil pessoas serem deportadas. O sofrimento era terrível... o número gigantesco, incontável mesmo, de pessoas assassinadas sem motivo”.

Após três meses, a família Kaminsky foi libertada em Drancy. Um irmão de Adolfo conseguira enviar cartas ao Consulado da Argentina, que interveio em seu favor. Os Kaminskys eram judeus, mas sua cidadania era argentina e esse país ainda mantinha neutralidade, na guerra. Eles foram uma das poucas famílias judias que conseguiram deixar Drancy.

Após serem libertados, o pai de Adolfo contatou a Resistência francesa. Julgou que seria mais seguro para sua família que seus membros se separassem adotando identidades falsas. O rapaz, então com 18 anos, foi encarregado de retirar seus novos documentos com um membro da Resistência diante da Sorbonne, a conceituada universidade. Quando esse combatente soube que Adolfo Kaminsky trabalhava com tingimento e sabia remover marcas de tinta, imediatamente recrutou-o para ser um dos falsificadores no laboratório deles, em Paris. Ele lhe perguntou: “Você sabe remover manchas de tinta?”, ao que o rapaz prontamente respondeu que sim, e que era mesmo a sua especialidade! “E tintas indeléveis?”, insistiu o francês da Resistência? E Kaminsky respondeu: “Tal coisa não existe” ...

O laboratório do grupo underground judaico conhecido como “La Sixiême” foi instalado em um apartamento do Quartier Latin, na Paris ocupada pelos nazistas. Kaminsky, usando o pseudônimo Julien Keller, e outros três se faziam passar por pintores para evitar atrair a atenção dos vizinhos com o cheiro dos produtos químicos. Chegavam mesmo a ter pinturas pelas paredes, telas, pincéis e várias latas de tintas espalhados pelo apartamento.

Os falsificadores inundaram a França toda com documentos impecavelmente falsificados. Esse laboratório secreto iria se tornar um dos maiores fornecedores de documentos forjados para os judeus franceses e sua reputação se espalhou rapidamente. Não tardou para que eles passassem a receber pedidos dos partisans em vários países europeus.

As habilidades de falsificação de Kaminsky comprovaram ser espetaculares na remoção da tinta azul permanente, usada em documentos oficiais, um feito considerado impossível por vários técnicos experientes. “Essa verdadeira arte foi muito importante pois nos permitia usar documentos reais, uma vez que se podia apagar dados sem deixar qualquer vestígio”, Adolfo declararia décadas depois em uma entrevista no programa 60 Minutes, da CBS, nos Estados Unidos.

Sua hábil técnica lhe permitia apagar nomes que indicavam sua origem judaica, como Abraham ou Esther, nos documentos de identificação franceses e os substituir por outros tipicamente gentios. Exemplificando, ele transformou o nome de uma menina judia, Edith Mayer, em uma menina não-judia chamada Elise Maillet. Além disso, parte importantíssima do seu trabalho era a remoção completa da palavra Juif ou Juive que era carimbada em tinta vermelha nos documentos de identidade.

Ele não apenas alterava os documentos – também os criava do zero, mesmo carteiras de identidade, de racionamento de alimento, de tabaco, bem como certidões de nascimento e casamento. Um axioma norteou toda a sua vida: “Tudo o que é concebido e feito pelo homem pode, naturalmente, ser reproduzido por outro homem”.

Seu grupo de falsificadores trabalhava dia e noite, usando meios improvisados a fim de fornecer identidades falsas a judeus que tentavam escapar das garras do Nazismo. Usavam instrumentos de cozinha, máquinas de costura, carimbos e até mesmo uma máquina para envelhecer os documentos feita com um pneu de bicicleta! As máquinas de costura eram usadas para criar as perfurações nos selos e passaportes. Já na fase de acabamento, para dar uma impressão de uso intenso e desgaste por ficar dias e dias nos bolsos, eles envelheciam os documentos com resíduo de tabaco e uma poeira especial que eles centrifugavam, em grande velocidade, numa roda de bicicleta que fazia as vezes de centrífuga.

Kaminsky sabia replicar com tremenda autenticidade nomes e endereços com a caligrafia rebuscada dos funcionários municipais; ele conseguia imprimir o papel em camadas e fazer gravações até que a página ficasse idêntica à original. Falsificava assinaturas e reproduzia marcas d’água à perfeição. Tudo nele era detalhe e precisão – um erro podia custar uma vida.

Os documentos falsos inundaram a França, ao ponto de levar a polícia a começar a procurar “o falsificador de Paris”. Os documentos eram impecáveis, tão perfeitos que a polícia nunca suspeitou, à época, que o falsificador que procuravam era um garoto de 18 anos de idade.

Em determinado momento, a Resistência pediu que Adolfo Kaminsky produzisse 900 documentos, de uma tacada. Eram certidões de nascimento e de batismo, além de cartões de racionamento para 300 crianças judias que estavam em instituições e que estavam às vésperas de serem capturadas pelos nazistas. Até mesmo crianças pequenas precisavam de cartões de racionamento para poderem se alimentar. O objetivo era despistar os alemães até que as crianças conseguissem ser contrabandeadas para fora das instituições e levadas a famílias cristãs que viviam em zonas rurais, ou para conventos, ou para a Suíça e a Espanha. Deram-lhe três dias para completar o trabalho no qual ele estava grudado, dia e noite, até que desmaiou de exaustão. Mas se levantou e seguiu trabalhando. Posteriormente ele contaria que uma hora de seu sono poderia significar a diferença entre a vida e a morte de várias crianças...

Na entrevista acima mencionada na CBS, o jornalista Anderson Cooper lhe perguntou se ele teve medo ao se filiar à Resistência francesa. “Medo de quê?”, Kaminsky reagiu. “O risco era o mesmo se você não fizesse nada. Então, pelo menos o meu trabalho na Resistência era uma forma de lutar. Eu lutava em prol da humanidade.”

Ele não sabe exatamente quantos documentos conseguiu falsificar durante a guerra, mas estima que tenham sido milhares. Após a guerra ele guardou para si alguns dos documentos que criara e os originais usados como modelo.

Kaminsky nunca foi preso. Testemunhou a libertação de Paris em 25 de agosto de 1944 e logo após a cidade ter sido libertada, ele foi recrutado pela inteligência militar da França para produzir documentos para os espiões franceses enviados às linhas inimigas pois a guerra continuava, no restante da Europa. A capitulação nazista só ocorreu em maio de 1945.



Kaminsky imediatamente se pôs a criar documentos falsos para o Mossad LeAliyah Beit (Organização para Imigração “Ilegal”) – que contrabandeava judeus deslocados para a Palestina sob Mandato Britânico


. Após a Guerra:

Seu trabalho como falsificador não terminou com o final da 2ª Guerra Mundial. Em suas palavras, “Em janeiro de 1946, eu estava na Alemanha e vi um acampamento de DP (Displaced People), pessoas deslocadas pela guerra. A situação dos judeus, que compunham a grandissíssima maioria das pessoas deslocadas, era insustentável. Aqueles judeus, querendo ir para a então Palestina sob Mandato Britânico, não tinham para onde ir. Nem lhes passava pela cabeça retornar à Alemanha ou Polônia, de onde tinham sido escorraçados e não queriam se estabelecer na França, tampouco. Tinham que deixar a Europa para trás, e precisavam de ajuda para isso, e eu fiz todo o possível para os ajudar”.

Kaminsky imediatamente se pôs a criar documentos falsos para o Mossad LeAliyah Beit (Organização para Imigração “Ilegal”) – que contrabandeava judeus deslocados para a Palestina sob Mandato Britânico. Ele também fez documentos falsos para membros do Irgun e do Lehi, as organizações underground judaicas que trabalhavam em prol da independência de Israel do domínio inglês.

“Sentia-me muito orgulhoso”, escreveu em seu livro, “por ter ajudado a facilitar a imigração ilegal de dezenas de milhares de sobreviventes dos campos de concentração nazistas, contribuindo também para a criação do Estado de Israel”.

Durante décadas ele trabalhou em inúmeras organizações clandestinas e movimentos revolucionários, tais como o Movimento anticolonialista pró-Independência da Argélia. Ajudou, também, com seu trabalho, em diversas causas em países como Angola, Venezuela, Argentina, Peru, Uruguai, Santo Domingo, Chile, Nicaragua, Haiti, entre vários outros. Tinha grande orgulho de dizer que nunca havia cobrado por seus serviços. Também forjou documentos para os americanos que tentavam escapar do alistamento forçado nos Estados Unidos durante a guerra no Vietnã.

A história de Adolf Kaminsky foi contada com riqueza de detalhes num livro escrito por sua filha, Sarah Kaminsky, publicado em 2009 e escrito na primeira pessoa, com sua voz. E no documentário do The New York Times, The Forger, vencedor de um Emmy Award, lançado em 2016.

Paralelamente a seu impressionante trabalho voluntário forjando documentos, Kaminsky se tornou fotógrafo profissional. Trabalhou como falsificador até o ano de 1971, sem jamais cobrar por seus serviços e sem nunca ser preso. Em 1971, abandonou esse trabalho numa ocasião em que estava para ser pego. Um ano depois, mudou-se para a Argélia, onde conheceu sua futura esposa.

Posteriormente voltou para a França, onde trabalhou em tempo integral como fotógrafo. Ele faleceu em 9 de janeiro deste ano de 2023, em sua casa em Paris, com 97 anos. Deixou esposa, dois filhos e nove netos.

Teve seu trabalho merecidamente muito reconhecido, tendo recebido várias condecorações e, muito destacadamente, a Medalha da Resistência da França.

. Bibliografia:

The Forger, documentário, The New York Times, https://www.youtube.com

Con Artist: The True Story of a Master Forger, artigo de Sefy Hendler publicado pelo jornal Haaretz em 7 de março de 2013, https://www.haaretz.com

Adolfo Kaminsky saved thousands of Jews by changing their identities, obituário publicado pela revista The Economist em 19 de janeiro de 2023, https://www.economist.com/obituary

Little-known WWII hero tells his story on 60 Minutes, produção da CBS, 26 de outubro de 2017, https://www.cbsnews.com/news

Revista Morasha

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