20 de maio de 2023

SEFARAD (ESPANHA): 1391-1492


O Castelo de Alcazar, Segóvia, Espanha

Os anos de 1391 e 1492 foram determinantes na história dos judeus de Sefarad, denominação em hebraico para a Península Ibérica. Em 1391 ocorreu a explosão da violência antijudaica, dando início à torrente de conversões forçadas de judeus ao Cristianismo e a uma profunda crise religiosa e social. e, 1492 foi o trágico ano em que os Reis Fernando de Aragão e Isabel de Castela promulgaram o édito de Expulsão que pôs um fim na presença judaica na região.

A partir da década de 1390, a enorme quantidade de judeus ibéricos que se converteram ao Cristianismo, ficando conhecidos como conversos, tornou-se um problema teológico e social tanto para os judeus praticantes como para a Igreja Católica. O termo “conversos” era usado em relação aos recém-convertidos e a seus descendentes inclusive em documentos oficiais da época. E ainda é amplamente utilizado na Espanha.

Os judeus se perguntavam que atitude tomar, no aspecto religioso e comunitário, em relação aos anussim, termo usado em hebraico para identificar os judeus forçados a se converter a outra religião, e seus descendentes. A tradução dessa palavra significa “os coagidos” ou “os forçados”. Havia leis religiosas judaicas sobre as conversões a outras religiões. Mas, nunca antes na História Judaica, um número tão grande de judeus, ao serem colocados entre “a cruz e a espada”, a conversão ou a morte, escolheram se batizar e não morrer como mártires, em Santificação do Nome Divino (Al Kidush HaShem). Tampouco um número tão grande de nossos irmãos viveu como cristãos, na aparência, mas secretamente e na medida do possível, como judeus fiéis às Leis de Moisés.

Para a Igreja, as conversões não foram uma vitória, como se acreditava incialmente. As autoridades eclesiásticas logo descobriram que milhares dos recém-convertidos, e muito de seus descendentes, eram criptojudeus que seguiam secretamente as leis e tradições judaicas.

O “problema dos conversos” e a influência dos judeus sobre eles é uma das grandes preocupações da Igreja e dos governantes durante todo o século 15. Em 1480 os Reis da Espanha, Fernando e Isabel, autorizam a instalação da Inquisição para “resolver o problema”; mas, em 1492, pressionados pelas autoridades eclesiásticas, optaram por uma solução ainda mais brutal: tornaram o Judaísmo ilegal em seus domínios.

A Inquisição espanhola, porém, alegando que a heresia judaizante não acabara com a expulsão dos judeus dos domínios da Coroa Espanhola, continua, juntamente com seus agentes, a perseguir, durantes séculos, a população conversa.

O ano de 1391

Do século 13 até o final do século 15, viviam em Sefarad as comunidades judaicas mais populosas, ricas e politicamente poderosas do continente europeu. O historiador espanhol José Hinojosa Montalvo estima que, no início do século 14, apenas no Reino de Castela viviam cerca de 100 mil judeus.

Em meado desse século 14 a Peste Negra varre a Europa matando um terço de sua população e provocando convulsões sociais e econômicas. Em Sefarad, a devastadora doença e os problemas econômicos que se seguiram atiçam o ódio da população contra os judeus, falsamente acusados em todo o continente europeu de ter espalhado a peste envenenando os poços d’água.

Foi também nessa época que a Igreja Católica empreendeu uma feroz campanha antijudaica nos Reinos Cristãos da Península Ibérica. Os judeus eram retratados como “seres diabólicos que tramavam a destruição do Cristianismo” e os inflamatórios sermões proferidos dos púlpitos das Igrejas atiçavam o ódio dos cristãos contra os judeus, enquanto os frades percorriam a Península pregando a conversão destes últimos ao Cristianismo.

A conversão de nosso povo tornara-se um dos principais objetivos da Igreja. O Cristianismo considerava o batismo um ato irreversível, mesmo quando realizado sem o consentimento do batizado. Ainda de acordo com a fé cristã, o batismo proporcionaria aos judeus “um benefício espiritual já que lhes asseguraria a salvação da alma para a eternidade”. Uma vez batizada, a pessoa era obrigada a seguir as leis e cânones da Igreja. Durantes séculos, em países declaradamente cristãos, as autoridades eclesiásticas podiam contar com a justiça secular para impor suas determinações religiosas à força.

Apesar dos sentimentos antijudaicos das massas e da Igreja, os judeus ainda se sentiam seguros sob a proteção dos reis. Mas o antagonismo do povo era cada vez mais forte e a violência antijudaica acaba explodindo em junho de 1391, primeiramente em Sevilha.

O instigador foi o Arquidiácono de Ecija, Ferrant Martinez, que vivia em Sevilha. Por mais de uma década, Martinez atiçara o ódio entre os fiéis, “alertando-os” para a “iniquidade” judaica e estimulando-os a cometer violência física contra eles. Do púlpito, Martinez pedia a destruição das 23 sinagogas de Sevilha e o confinamento dos judeus em seu bairro, como forma de evitar o “contato desnecessário com os cristãos”. Repetidamente o rei de Castela, Juan I, e o Arcebispo de Sevilha, Pedro Gomez Barroso, exigiam o fim das pregações antijudaicas, mas o Arquidiácono ignorava tanto as ordens reais quanto as do Arcebispo.

Após a morte de Juan I, em 1390, Martinez intensificou os ataques, aproveitando-se da instabilidade política que tomara conta de Castela, já que o herdeiro ao trono, Enrique III, tinha apenas 11 anos de idade.

Em 4 de junho de 1391, uma multidão cristã armada invadiu o bairro judaico de Sevilha e atacou ferozmente seus residentes. Crônicas da época relatam que mais de quatro mil judeus foram mortos e os sobreviventes foram poupados apenas após sua conversão ao Catolicismo.

Esses massacres espalharam-se de uma cidade a outra pelos reinos de Castela, Aragão e Catalunha e nas Ilhas Baleares. Turbas cristãs, impulsionadas por um fervor religioso, avançavam sobre os bairros judaicos em todos esses lugares. Apenas as populações judaicas dos Reinos de Navarra e Portugal ficaram livres desses brutais ataques.

Durante um ano os judeus foram alvo da violência cristã. De acordo com um relato da época, um dos líderes destes massacres vangloriava-se de ter convertido 20 mil judeus à força e matado outros 10 mil.

Crônicas judaicas afirmam que, ao entrar nos bairros judaicos, os cristãos gritavam “Batismo ou morte a todos os judeus”. Um dos trágicos relatos dessas Crônicas dizia: “Mataram muitos de meu povo …muitos morreram para santificar o Nome de D’us (Al Kidush Hashem) e muitos violaram o Pacto Sagrado (através da conversão...)”.

No Reino de Castela poucas comunidades judaicas foram poupadas e as de Aragão por pouco escaparam da total destruição. Importantes comunidades como Toledo, Sevilha e Perpignan foram destruídas e suas sinagogas transformadas em igrejas. Todas as 23 sinagogas de Barcelona foram queimadas.

Historiadores acreditam que, por volta de 1391, viviam em Sefarad entre 280 a 300 mil judeus. De acordo com relatos da época, quando a ordem foi restaurada, o número de judeus que haviam sido forçados a se converter chegava a 100 mil. Era estarrecedor. Um terço do restante da população havia sido assassinada e apenas outro terço conseguira sobreviver como judeus praticantes. Alguns se esconderam em vilarejos, outros fugiram para terras sob domínio islâmico até a ordem ser restabelecida.

A princípio, a Igreja festejou as conversões. Havia autoridades eclesiásticas que afirmavam que “um grande milagre fora realizado para provar a todos que a fé cristã era a verdadeira e o Cristianismo a única religião válida”. Mas a Igreja Católica não tardou em perceber que uma grande parte dos conversos ainda seguia, às escondidas, as leis e tradições judaicas. Para a Igreja esse era um comportamento herético, um flagrante desvio das doutrinas católicas, que devia ser extirpado nem que fosse pela força. As conversões não haviam solucionado, como a Igreja esperava, o “problema judaico”, mas, sim, criado outro: a “heresia judaizante”.

Após os massacres de 1391 o judaísmo espanhol sobreviveria ainda mais um século devido à determinação dos monarcas em proteger a população judaica, fonte de grande parte da riqueza de seus reinos. Apesar da proteção dos monarcas, fracassaram muitas das tentativas dos judeus de reerguerem suas comunidades. Em Barcelona e Valência o fracasso foi absoluto. No século 15, ainda havia 216 Juderías no Reino de Castela e 35 no Reino de Aragão, mas grande número de judeus já havia abandonado as cidades em favor da vida nos vilarejos.

A população conversa

No início do século 15 a população conversa era numerosa, mas não religiosamente homogênea. Havia os que tinham abraçado o Cristianismo, tornando-se, na maioria dos casos, cristãos “mornos”, assim como haviam sido judeus “mornos”. E havia os que se tornaram criptojudeus. Na aparência cristãos, procuravam, às escondidas, manter sua fé. Mas esse tipo de comportamento era extremamente perigoso, pois a Igreja mantinha um cerrado controle sobre os conversos e suas interações com os judeus praticantes. Era perigoso para um converso ir a uma sinagoga, ser visto realizando algum rito judaico ou possuir algum objeto ou texto sagrado judaico. Com o passar do tempo, o conhecimento da religião judaica foi inexoravelmente se diluindo, e as leis e tradições foram “simplificadas” e substituídas por um conjunto de tradições únicas, hibridas, que eram transmitidas de geração a geração.

É importante ressaltar que nem todos os convertidos haviam sido forçados a adotar o Cristianismo. Alguns decidiram se batizar por motivos “pragmáticos”, queriam fugir da legislação discriminatória às quais os judeus estavam submetidos e realizar suas ambições profissionais ou comerciais. Outros, o haviam feito por acreditar na fé cristã. Infelizmente, entre eles, alguns se voltaram contra seus irmãos e foram causadores de grande sofrimento.

Como mencionamos acima, para a população judaica os recém-convertidos eram uma fonte de angústia e de perigo. As lideranças comunitárias e religiosas perguntavam-se como agir em relação aos conversos, já que muitos deles eram seus próprios familiares. Havia questões religiosas e comunitárias referentes ao status desses conversos e seus descendentes e questões relativas à sua segurança.

A presença de conversos em sinagogas ou em outros eventos da vida judaica era perigosa tanto para os judeus como para os conversos. Qualquer judeu acusado de estar “induzindo” um converso a adotar alguma prática “herética” podia ser severamente punido.

Os anos de 1412 e 1413

Os 20 anos que se seguiram aos eventos de 1391 foram de relativa calma. Os Reis eram tolerantes com os “conversos judaizantes” pois precisavam contrabalançar suas necessidades financeiras com suas obrigações com a Igreja. Mas, as autoridades eclesiásticas queriam isolar os judeus, cada vez mais, para “preservar” os cristãos-velhos1 e, principalmente, os conversos de qualquer “contaminação judaica”. Exercendo forte pressão sobre os monarcas a Igreja consegue que sejam outorgadas leis que limitam as interações entre judeus e cristãos. Entre outros, as novas leis proíbem os conversos de viver perto de judeus, bem como de socializarem e se casarem com eles. Os conversos acabam por se tornar um grupo à parte, a maioria vivendo e se casando entre si.

No ano de 1412, as comunidades judaicas de Castela e Aragão sofreram novos baques. O primeiro ocorreu em 2 de janeiro de 1412, quando as Cortes de Valladolid2, no Reino de Castela, regulamentam as relações entre cristãos e judeus. As novas leis restringem suas liberdades, reduzindo-os à condição de párias. Eles são despejados de seus bairros, obrigados a viver em bairros pobres e mal localizados, e a se vestir modestamente. As leis limitavam as profissões que podiam exercer. Entre outros, não podiam ocupar cargos públicos, coletar impostos para os governantes – que sempre fora parte significativa da origem da riqueza judaica – nem tampouco possuir ou cultivar terras. Em decorrência da união de Castela e Leon, as leis passaram a ser válidas também em Leon. E no Reino de Aragão, o rei Fernando I promulgou leis semelhantes.

Os instigadores das novas leis eram o pregador Vincent Ferrer e Pablo Garcia de Santa Maria – um apóstata judeu que Ferrer convertera e que, mais tarde, se tornaria bispo de Burgos e Castela. Foi Ferrer quem, em julho de 1411, ao chegar a Toledo, apoderou-se da linda sinagoga principal e a converteu na Igreja de Santa Maria la Blanca. Segundo as fontes, Ferrer teria batizado mais de quatro mil judeus, em Toledo.

Disputa de Tortosa (1412-1414)

A situação da população judaica de Aragão piora após o rei Fernando I se aliar ao Antipapa Benedito XIII – reconhecido como “Papa”, na Espanha.

Benedito XIII decide colocar em prática a sugestão de Gerónimo de Santa Fé, um apóstata judeu de nome Joshua Lorki, de realizar um debate teológico entre representantes judeus e católicos. E, assim, foi projetada a Disputa de Tortosa. O objetivo era desmoralizar o Judaísmo e a autoridade rabínica e, desta forma, despertar um entusiasmo pelo Cristianismo para posteriormente efetuar uma conversão em massa dos judeus.

Em 1412, Benedito XIII, apoiado por Fernando I, ordenou às lideranças das comunidades judaicas de Aragão e Catalunha o envio de delegados a Tortosa. Alertou-os de que seriam debatidas, em sua presença, as alegações de Gerónimo de Santa Fé que afirmavam poder “provar”, em fontes judaicas, a “autenticidade do messianismo de Jesus”.

A Disputa, a mais longa e importante das disputas cristãs-judaicas impostas aos judeus durante a Idade Média, durou 20 meses. Contou com o envolvimento de um número jamais visto de autoridades cristãs, eclesiásticas e laicas. Os judeus eram liderados por Vidal Benveniste. As fontes judaicas mencionam a participação de Rabis Zerahiah ha-Levi, Astruc ha-Levi, Joseph Albo e Mattathias ha-Yizhari.

A Disputa não foi um debate, pois cabia aos judeus apenas responder aos questionamentos de Gerónimo, sendo-lhes proibida a oportunidade de réplica. Como afirmara Benedito XIII na abertura da Disputa: “Eu não vos fiz vir aqui para provar qual de nossas religiões é a verdadeira, pois para mim é perfeitamente claro que a minha é verdadeira e que a vossa está ultrapassada”.

O Judaísmo foi submetido a um ataque verbal público. O lado cristão utilizou de intimidações e ameaças, a fim de obrigar os judeus a aceitar os argumentos de seus adversários. Para as autoridades eclesiásticas era indispensável que os judeus reconhecessem publicamente falhas no que diz respeito ao Messias na própia interpretação do Talmud.

Quanto ao desfecho da Disputa em Tortosa, os historiadores concordam que os judeus mostraram grande coragem, fazendo uso de argumentos lógicos. A contestação judaica aos argumentos cristãos produziu as melhores respostas oferecidas dentre todas as disputas judaico-cristãs na Idade Média.

Mas, para a população judaica de Aragão, a longa ausência dos líderes de suas comunidades foi nefasta. Enquanto os rabinos enfrentavam os questionamentos cristãos em Tortosa, os frades percorreram o Reino utilizando de todas as armas possíveis, inclusive ameaças, para convertê-los. Muitos se desesperaram e aceitaram o batismo. De acordo com o historiador espanhol do século 16, Gerónimo de Zurita, mais de três mil judeus foram batizados apenas em 1414.

Estima-se que além das 100 mil conversões iniciais, ocorridas após os massacresde 1391, outros 50 mil judeus se converteram nos anos seguintes até meados de 1415.

A onda de conversões perdeu força quando os reis Afonso V de Aragão e João II de Castela e León assumiram o poder em seus respectivos reinos. Os monarcas estavam mais interessados em assuntos econômicos do que em fanatismo religioso e queriam a sobrevivência das comunidades judaicas para beneficiar seus reinos.

Entre 1419 e 1422, João II, Afonso V e o Papa Martin V aboliram os éditos antijudaicos que vinham sendo publicados desde o final do século 14, e algumas das restrições socioeconômicas. Outras restrições caíram em desuso. Algumas sinagogas foram restituídas aos judeus e o estudo do Talmud voltou a ser permitido. Porém, os eventos de 1391, 1412 e 1413 haviam causado prejuízos irreparáveis ao Judaísmo ibérico.

As leis de pureza de sangue

No Reino de Castela-Leon, onde vivia a maioria dos judeus espanhóis, ainda restavam comunidades judaicas importantes em Sevilha, Toledo e Burgos, e havia um número reduzido de judeus dispersos por várias cidades menores. Mas, as comunidades foram empobrecendo à medida que os conversos passaram a exercer atividades econômicas até então desempenhadas por judeus. E, ainda mais grave, aos olhos dos governantes, à medida que ia crescendo a importância econômica dos conversos, diminuía a relevância judaica.

A ilusão dos conversos de viver em paz teve curta duração. Os “cristãos genuínos”, como se autodenominavam os cristãos-velhos, os viam com uma hostilidade ainda maior do que a existente em relação aos judeus, e se referiam aos conversos de forma pejorativa. Chamavam os conversos de marranos (porcos), um nome que infelizmente caiu no uso popular.

O fervor religioso não era a única causa dos conflitos anticonversos ocorridos em Sefarad. Em sua maioria esses conversos não eram ricos, mas uma respeitável parcela deles conseguira alcançar grande prosperidade e sucesso.

Os conversos não estavam sujeitos às leis que restringiam a vida dos judeus e, apesar do preconceito que os cercava, muitos ocupavam posições de destaque na economia e no comércio, na administração dos Reinos, na burocracia civil e até mesmo na Igreja. Algumas famílias conversas chegaram a criar alianças por meio de casamentos com a nobreza. A rápida ascensão econômica, social e política conversa exacerbou o ressentimento e o antagonismo dos cristãos-velhos que acreditavam que o sucesso destes últimos era obtido às suas custas.

Os primeiros motins contra os conversos irromperam em Toledo, em 1449. O conflito levou à adoção, pela cidade, de um estatuto que bania os conversos e seus descendentes da maioria dos cargos oficiais.

As leis promulgadas em Toledo lançaram as bases para uma série de leis de pureza de sangue, ou limpieza de la sangre, em espanhol. Para um cristão comprovar sua “pureza de sangue” devia provar que não havia nenhum judeu ou mouro em sua linhagem. O objetivo dessa política era impedir uma maior inserção de cristãos-novos e seus descendentes na vida socioeconômica de Toledo. A política de limpieza de la sangre foi sendo gradualmente adotada em toda Sefarad.

Os ataques contra a população conversa continuaram ocorrendo no Reino de Castela. Em junho de 1449, os conversos que viviam em Ciudad Real reagiram após terem sido atacados por cristãos-velhos, tendo a luta durado 15 dias. Os ataques se repetiram em 1464, 1467 e 1474, sendo que esse último massacre foi particularmente grave.

Com a criação da política de limpieza de la sangre, surge na Espanha uma nova variante de antijudaísmo – o antissemitismo racial, que iria fundir-se com a judeofobia, o antijudaísmo religioso das massas. Uma das obras antissemitas que circulavam na época, em Sefarad, o Libro del Alborayque, retratava os conversos como “bestas horrendas cuja intenção era a destruição do Cristianismo”. Havia autoridades eclesiásticas que condenaram a discriminação contra os conversos afirmando que era contrária à fé cristã, entre eles o Papa Nicolau V. O Pontífice denunciou as leis de limpieza de la sangre e excomungou seus autores, mas o preconceito contra os conversos seguia cada vez mais forte.

As autoridades municipais de Toledo saíram em defesa das leis de limpieza de la sangre com a publicação de um manifesto “detalhado dos crimes e iniquidades” dos “novos cristãos”, determinando, entre outros: “Declaramos que todos os ditos conversos, todos eles descendentes da perversa linhagem dos judeus, em decorrência das acima mencionadas heresias e outras ofensas, … serão agora, portanto, declarados … indignos de assumir qualquer cargo em benefício público e privado na dita cidade de Toledo … de ter qualquer domínio na dita cidade de Toledo e em suas terras … ou sobre os cristãos-velhos”.

Os Reinos Unidos de Aragão e Castela

Em meados do século 15,  Sefarad era ainda um conjunto de reinos independentes. A formação do Reino da Espanha teve início, em 1469, com o casamento de Isabel de Castela e Leão e Fernando II de Aragão. Em 1474, Isabel ascende ao trono de Castela e, cinco anos depois, Fernando se torna rei de Aragão. De 1479 em diante eles governaram o que era, de fato, um único reino unificado. Num primeiro momento, os reis não eram hostis aos conversos ou aos judeus, havendo inúmeros deles que ocupavam cargos importantes na administração do Reino. Dois judeus eram encarregados de administrar as receitas e fornecer abastecimentos ao exército real: Rabi Isaac ben Judah Abravanel e Don Abraham Seneor, de Segóvia, Rabino-Chefe da comunidade judaica e Coletor-Chefe de impostos reais, em Castela.

Mas, numa época em que a heresia era o maior dos crimes, não havia lugar para tolerância. Não foi apenas por razões políticas que eles receberam do Papa Alexandre VI o título de Los Reyes Católicos. Os constantes relatórios sobre supostas reuniões secretas, durante as quais os conversos praticavam seus “antigos ritos judaizantes”, alarmavam o casal real, principalmente Isabel. Os Reis levavam a sério suas responsabilidades religiosas e consideravam ser sua obrigação extirpar a “heresia conversa” e impedir a população judaica de “influenciar” os cristãos.

Coube ao prior dominicano de Sevilha, Alonso de Hojeda, convencer os Reis, em 1447, sobre a necessidade de estabelecer um Tribunal da Inquisição em suas terras “como sendo a única forma de combater a heresia judaizante”. Não querendo a interferência do Vaticano em seu Reino, Isabel e Fernando obtêm do Papa Sisto IV, em novembro de 1478, algo inédito: a autorização para a criação da Inquisição na Espanha, sob jurisdição real.

O primeiro Tribunal do Santo Ofício foi instalado em Sevilha, em setembro de 1480. O alvo principal da Inquisição eram os “judaizantes”, mas os judeus não estavam a salvo. De acordo com as leis canônicas, os não-cristãos estavam fora da jurisdição da Inquisição, porém, se um judeu fosse acusado de induzir um cristão a adotar alguma prática “herética”, ou seja, algum rito judaico, incorreria em severa punição.

Quando, em 6 de fevereiro de 1481, foi realizado o primeiro Auto-de-fé, seis conversos foram queimados vivos. A imensa riqueza dos condenados foi imediatamente confiscada pelo Tesouro Real. A Inquisição e a Coroa cobiçavam os bens dos conversos e o interesse econômico acabou elevando exponencialmente as acusações. Segundo os registros, entre 1481 e 1488, houve 750 autos-de-fé apenas em Sevilha.

A verdadeira identidade religiosa dos conversos

Os historiadores têm debatido a questão da verdadeira identidade religiosa dos conversos. Teriam os conversos, em sua maioria, guardado elementos essenciais da identidade judaica bem depois de 1391? Durante quanto tempo? Que tipo de ligação as gerações seguintes mantiveram com o Judaísmo? Quantos se casaram com cristãos-velhos?

Renomados historiadores, como Cecil Roth,Yitzhak Baer e Haim Beinart, estes dois últimos historiadores israelenses especializados na história do Judaísmo na Espanha Medieval, são unânimes em argumentar que, antes da Expulsão de 1492, os primeiros conversos e a maior parte de seus descendentes permaneceram fiéis ao Judaísmo, da melhor forma que puderam. Argumentavam também que as comunidades judaicas de Sefarad reconheciam que a conversão havia sido realizada em condições de extrema coerção e que a maioria dos conversos não acreditavam no Cristianismo. Na opinião de Baer e Beinart, os documentos inquisitoriais revelam as práticas judaicas por parte dos conversos.

Em claro contraste, Benzion Netanyahu3, importante historiador dedicado à Idade Média e Inquisição, argumenta que, após as conversões de 1391, as gerações subsequentes já não tinham forte ligação com o Judaísmo. Segundo o historiador, a principal motivação da Inquisição em sua perseguição contra os conversos não era extirpar a heresia judaizante. Não havia dúvidas sobre o profundo antijudaísmo cristão, mas, os cristãos-velhos queriam destruir os conversos como classe socioeconômica independentemente de sua crença religiosa. Não importava se haviam abraçado o Cristianismo de “corpo e alma” ou se eram judaizantes.

A maioria dos historiadores, porém, acredita que a realidade era bem mais complexa do que esses polos extremos. A própria identidade dos conversos era complexa e a ligação que cada um deles mantinha com o Judaísmo, suas práticas religiosas e suas crenças refletiam sua experiência singular. No entanto, é indiscutível que, com o passar das gerações, o conhecimento e a ligação com o Judaísmo se foram diluindo. Muitos se casaram com cristãos-velhos, assimilando-se cada vez mais.

A solução da questão dos conversos

Quaisquer que fossem as motivações por trás das ações da Inquisição, o resultado foi uma implacável perseguição aos conversos e aos judeus. Quando os conversos passaram a agir contra a Inquisição, os inquisidores não retrocederam; pelo contrário, a campanha antissemita tornou-se mais violenta. Em seguida, dirigiram petição à Coroa, pedindo a adoção de medidas “apropriadas” para pôr um fim à heresia dos conversos. A proposta da Inquisição era a expulsão em massa dos judeus.

Para apaziguar a Inquisição, em janeiro de 1483 os monarcas expulsaram os judeus de Andaluzia e, em maio de 1486, os de Aragão, mas a expulsão em grande escala teve de ser adiada. A Coroa precisava da riqueza judaica e conversa para financiar a campanha contra Granada, o último enclave islâmico na Península.

Em 2 de janeiro de 1492, o estandarte da Coroa espanhola foi alçado na Torre de Alhambra, em Granada. Logo após a conquista de Granada, já circulavam rumores de que os judeus seriam expulsos da Espanha. Ainda havia inúmeros deles ocupando cargos importantes na Corte. Rabi Isaac ben Judah Abravanel e Don Abraham Seneor inutilmente tentaram fazer os soberanos mudarem de ideia. Em 31 de março, os Reis assinaram o decreto de expulsão do Reino de todos os judeus e mouros que não aceitassem a conversão ao Cristianismo. O prazo para escolher entre o exílio ou o batismo era apenas de quatro meses.

Após a publicação do Édito iniciou-se uma ampla campanha de conversão. Os Reis ofereceram a Don Isaac Abravanel riquezas e honrarias, mas ele se recusou a se converter, indo para o exílio. Mas um número significativo de judeus se batizou. Entre esses, dois dos mais importantes membros da comunidade judaica espanhola, Don Abraham Seneor e seu genro, Rabi Meir Melamed. Eles foram batizados em uma grande cerimônia, em junho de 1492. A deplorável escolha de Abraham Seneor levou centenas de judeus a seguir o mesmo caminho.

O número de judeus que se converteram e daqueles que partiram é puramente especulativo. Acredita-se que cerca de 50 mil tenham-se exilado para as terras mediterrâneas, alguns para a África Ocidental e uns poucos para a Holanda. A maioria, porém, estima-se que entre 100 mil e 120 mil, partiu para Portugal. Mas Portugal provou não ser um refúgio seguro, pois, em 1497, o rei D. Manuel I decretaria a conversão forçada dos judeus que viviam em seu país.

A expulsão dos judeus da Espanha, em 1492, e a Conversão Forçada de 1497, em Portugal, levou-os a buscar refúgio e estabelecer comunidades em terras como as do Norte da África e do extenso Império Otomano, onde eram recebidos de braços abertos e eram livres para professar sua fé.

No Reino de Espanha, os que lá permaneceram iriam ter que enfrentar a hostilidade dos cristãos-velhos e a perseguição implacável da Inquisição. Ademais, o conceito de “limpeza do sangue” os impediria de trabalhar em vários ofícios. Impedidos pelo governo de deixar o país e correndo constante perigo, um grande número de conversos nascidos nominalmente no seio do Cristianismo decide fugir e traçar o caminho de volta às suas raízes.

Os difíceis questionamentos e dúvidas que haviam angustiado os judeus de Sefarad quanto às medidas que deviam ser tomadas em relação aos conversos, iriam afligir as lideranças das comunidades estabelecidas pelos judeus exilados. Como agir com os descendentes dos conversos? Homens e mulheres cujos antepassados eram judeus e que, após fugir da Península Ibérica e da Inquisição, queriam voltar a abraçar o Judaísmo. Os rabinos não queriam desestimulá-los, mas, ao mesmo tempo, não podiam relevar o fato de que os conversos haviam vivido, por longos anos, como cristãos, e, em certos casos, de se terem casado com cristãos-velhos.

A realidade era que, à medida que o tempo passava, tornava-se cada vez mais difícil para os conversos terem um conhecimento “real” do Judaísmo. Em muitos casos, conheciam as leis e tradições judaicas numa versão diluída que lhes fora repassada por seus pais. Sabemos que os manuais da Inquisição eram, às vezes, utilizados como fonte de informação sobre o Judaísmo. À medida que aumentava o distanciamento dos conversos de suas raízes judaicas, tornavam-se mais severas as exigências feitas por parte das comunidades judaicas em aceitar os conversos como judeus e membros da comunidade. Entre as exigências estava a circuncisão, a purificação através da submersão na micvê, o estudo do Judaísmo e, mais tarde, uma conversão ortodoxa segundo os preceitos de nossa religião.

O futuro dos conversos que optaram por permanecer nos domínios das Coroas Espanholas e Portuguesas não foi aquilo que haviam imaginado. Fontes divergem sobre os números, mas estima-se que 120 mil entre judeus e conversos tenham optado por permanecer na Espanha. Todos eram obrigados por lei a seguir a religião cristã e se tornaram presa fácil da Inquisição que se interessava apenas em prender suspeitos de seguir secretamente ritos judaicos. Instalado apenas duas décadas antes do Édito de Expulsão, o Tribunal do Santo Ofício já operava em oito grandes cidades. Em paralelo, foram enviados agentes da Inquisição ao Novo Mundo desde 1522. Nos séculos seguintes a Inquisição espanhola alcançou novas dimensões de selvageria, intolerância e perversidade tornando-se um capítulo dos mais aterrorizantes na história. Milhares de conversos morreram queimados e tantos outros tiveram sua vida e a vida de seus descendentes arruinada.

1 Cristiaπos “genuínos”, ou seja, os que eram cristãos antes de 1391.

2 Cortes de Valladolid é a denominação historiográfica das reuniões das Cortes de Castilla ocorridas na cidade de Valladolid.

3Benzion Netanyahu(1910 –2012)- pai do primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, escreveu “Origins of the Inquisition in Fifteenth Century Spain”.

BIBLIOGRAFIA

Gerber, Jane S., The Jews of Spain, eBook Kindle

Lea, Henry Charles, A History of the Inquisition of Spain (Vol. 1-4), edição completa, eBook Kindle

Tartakof, Paola, Between Christian and Jew: Conversion and Inquisition in the Crown of Aragon, 1250-1391, (edição em inglês) eBook Kindle

Bejarano-Gutierrez, Dr. Juan Marcos Secret Jews: The Complex Identity of Crypto-Jews and Crypto-Judaism, (edição em inglês) eBook Kindle

Morashá agradece o apoio e contribuição da Rede de Judiarias e da Turespaña na confecção desta matéria.

. Fonte:

Revista Morashá - Edição 118 - Abril de 2023

http://www.morasha.com.br/comunidades-da-diaspora-1/sefarad-1391-1492.html

Nenhum comentário: