Rosh Hashaná é uma celebração religiosa de 2 dias, até mesmo em Israel
Realizada no primeiro e no segundo dia do mês hebraico de Tishrei, essa festa marca o início dos Asseret Yemei Teshuvá (Dez Dias de Arrependimento), também conhecidos como Yamim Nora’im (Dias temerosos), que culminam com Yom Kipur, o Dia da Expiação.
Esses Dias Temerosos são os mais sagrados e espiritualmente significativos do calendário judaico – um período de profunda reflexão e julgamento Divino. Conforme ensina o Talmud, o destino de cada pessoa é inscrito em Rosh Hashaná e selado em Yom Kipur (Talmud Bavli, Rosh Hashaná 16b).
Esta data sagrada não é apenas uma celebração de Ano Novo; Rosh Hashaná é um encontro solene com o Supremo Rei dos Reis. Embora seja marcado por refeições festivas e encontros familiares, é, acima de tudo, uma festa de reverência. Como ensinam os Mestres Chassídicos, em Rosh Hashaná nos aproximamos de D’us com alegria e tremor, pois o destino do mundo está em jogo.
Segundo o Talmud e os ensinamentos da Cabalá, o comportamento da pessoa em Rosh Hashaná influencia todos os dias do ano que está por vir. Por isso, os dois dias de Rosh Hashaná exigem serenidade e atenção – não há espaço para raiva, leviandade ou tristeza. Devem ser vividos com kavaná – uma intenção espiritual focada na oração, nas boas palavras e em uma conduta exemplar. Muitas pessoas aproveitam qualquer momento livre para recitar o Livro de Tehilim – os Salmos –, uma fonte poderosa para se atrair a misericórdia Divina.
Outro motivo pelo qual a festa de Rosh Hashaná é tão significativa é que ela marca um recomeço – para cada um de nós e para o mundo. É uma oportunidade de se começar de novo, como um renascimento, especialmente para quem se sente insatisfeito com a vida que tem levado até o momento. Embora as refeições festivas e os encontros familiares tenham seu valor, eles não são o centro da celebração. Rosh Hashaná é um tempo de despertar – um momento para se parar, refletir e escolher uma nova direção. É um chamado para nos realinharmos com nossos valores mais elevados e retornarmos à Fonte da vida.
Juntamente com Yom Kipur, Rosh Hashaná é a festividade mais amplamente celebrada do calendário judaico. Sinagogas ao redor do mundo ficam lotadas, e a festa é marcada pela saudação tradicional: Shaná Tová Umetuká – “um ano bom e doce”. Curiosamente, porém, a Torá Escrita nunca se refere a Rosh Hashaná como o Ano Novo. Ela não menciona o julgamento Divino, nem o início dos Dias Temerosos. Esses temas fundamentais são revelados pela Torá Oral – por meio do Talmud, do Midrash e dos ensinamentos cabalísticos e chassídicos. Na Torá Escrita, o dia é descrito apenas como Yom Teruá – “um dia de toque do shofar” (Números 29:1; Levítico 23:24).
Isso ressalta uma verdade central do Judaísmo: até mesmo o significado e a forma de cumprir mandamentos fundamentais dependem da Torá Oral. Como explicado no artigo desta edição, “Yom Kipur: teshuvá e perdão”, a Torá Oral não é uma tradição secundária – ela é o alicerce essencial da Halachá (Lei Judaica), do estudo da Torá e da própria vida judaica.
O fato de a Torá Escrita mencionar apenas o shofar, em relação a Rosh Hashaná, revela que o mandamento Divino de ouvir seus toques constitui o cerne da festa. A principal obrigação de Rosh Hashaná não são as refeições festivas nem os alimentos simbólicos, mas ouvir o som do shofar. Rituais guardados com carinho – como mergulhar a maçã no mel ou trocar a saudação Shaná Tová Umetuká – expressam nosso desejo por um ano bom e doce, mas são apenas costumes. O mandamento da Torá é claro e singular: ouvir os sons do shofar.
Por ser uma mitsvá tão central, comunidades judaicas ao redor do mundo – especialmente membros do movimento Chabad – empenham-se ao máximo para garantir que todo judeu possa cumpri-la. Seja em um quarto de hospital, em uma residência particular ou até mesmo em espaços públicos, o shofar é levado até aqueles que não podem comparecer à sinagoga em Rosh Hashaná.
Mas essa centralidade levanta uma questão: por que ouvir o shofar é tão essencial em Rosh Hashaná? Por que a Torá Escrita omite qualquer menção a essa data sagrada como sendo o Ano Novo ou como um Dia de Julgamento, e a define unicamente pelo toque do shofar?
Para compreender isso plenamente, é necessário recorrer à dimensão esotérica da Torá – os ensinamentos da Cabalá e do Chassidismo – que explicam que os sons do shofar não são simples toques, mas o clamor silencioso da alma: um grito que atravessa os Céus, silencia o Acusador Celestial e desperta a compaixão Divina mais profunda.
. A Renovação da Vontade Divina:
Rosh Hashaná não marca a criação do mundo em si, mas sim a criação da humanidade. Comemora o sexto dia da Criação, quando D’us formou Adam e Chavah, Adão e Eva. Embora a liturgia se refira à data como Hayom Harat Olam – “hoje é o dia da concepção do mundo” –, essa expressão reflete o fato de que o ser humano é o propósito e o ápice da Criação. Somente com o surgimento do homem e da mulher o mundo pôde, de fato, começar a cumprir sua missão Divina.
Segundo os ensinamentos do Rabi Yitzhak Luria, o Arizal, posteriormente desenvolvidos pelo Baal Shem Tov e pelo Alter Rebe, Rosh Hashaná não é apenas o aniversário da criação da humanidade. É o dia em que D’us decide se renovará ou não a própria Criação. Como explica o Alter Rebe – Rabi Shneur Zalman de Liadi, fundador da dinastia Chabad-Lubavitch – em sua obra cabalística Shaar HaYichud VehaEmuná (O Portal da Unidade e da Fé), a Criação não é estática; D’us sustenta e recria o universo a cada instante. No entanto, até mesmo essa renovação constante depende de Rosh Hashaná, quando D’us decide se continuará sustentando o mundo por mais um ano.
Embora D’us sustente constantemente a Criação, Sua vontade revelada de fazê-lo é renovada especificamente a cada Rosh Hashaná. Nas horas finais que antecedem a festa, esse
desejo Divino começa a se retrair. A vitalidade da existência enfraquece – a tal ponto que certos Sábios, sintonizados com o estado espiritual do mundo, chegavam a sentir-se fisicamente exaustos, refletindo a contração da energia Divina. Nesse breve intervalo, o mundo persiste apenas como um eco tênue da vitalidade do ano que passou. Então, em Rosh Hashaná, com o toque do shofar e a coroação de D’us como Rei, uma nova vontade Divina é despertada – e a Criação é renovada.
Assim, embora a energia criativa de D’us flua de forma contínua, sua fonte – Sua vontade de criar – é renovada especificamente em Rosh Hashaná. É o momento em que D’us, por assim dizer, reconsidera se deve continuar sustentando o mundo. E Ele escolhe fazê-lo em resposta aos nossos esforços: nossas orações, nossa teshuvá (arrependimento) e nosso anseio de atrair Sua presença para o mundo ao coroá-Lo como nosso Rei.
Por meio dos toques do shofar e das rezas de Rosh Hashaná, um novo ratzon – uma vontade Divina renovada – é despertado das profundezas mais íntimas da Essência de D’us. Não se trata de uma continuação da vitalidade do ano anterior, mas de uma expressão inteiramente nova do desejo do Rei de estabelecer uma relação com o Seu mundo.
Sob essa perspectiva, o tema central de Rosh Hashaná é a renovação do vínculo entre o Criador e Sua criação. D’us aguarda um motivo para escolher o mundo mais uma vez – para nele reinar como Rei e sustentar sua existência. Ao coroá-Lo por meio dos toques do shofar e da liturgia de Rosh Hashaná, não estamos apenas reafirmando nossa devoção, mas participando de um ato cósmico. Não se trata apenas de reconhecer Sua realeza – como fazemos diariamente –, mas de atrair essa soberania ao mundo de forma renovada. Por meio dessa coroação, os canais de bênçãos se abrem, e a Criação recebe uma nova vitalidade para o ano que se inicia.
Isso explica a intensidade espiritual única de Rosh Hashaná. Esses dois primeiros dias do ano são o momento em que o vínculo entre D’us e a Criação é renovado. Cada prece e cada toque do shofar contribuem para esse despertar cósmico. Como ensina a Cabalá, um despertar vindo de baixo provoca um despertar correspondente vindo do Alto. Por meio da nossa devoção – especialmente por meio da mitsvá central de ouvir o shofar – despertamos a vontade de D’us de, mais uma vez, escolher o mundo.
Assim, em Rosh Hashaná, a pergunta não é apenas se o ano que se inicia será bom e doce – mas se existirá. A criação continuará? Isso depende de nós.
. A Importância de Ouvir o Shofar:
Há muitos motivos pelos quais ouvir o shofar é a principal mitsvá de Rosh Hashaná. De acordo com o Talmud, um deles é que seu som confunde o Acusador Celestial – o Satán – e desperta a misericórdia Divina. O Satán atua como promotor no Tribunal Celestial, apontando nossas falhas e transgressões. No entanto, quando o shofar é tocado, sua voz é silenciada – não necessariamente porque tenhamos nos defendido ou provado nosso mérito, mas porque o shofar expressa uma verdade mais profunda do que as palavras podem alcançar.
Nossos Sábios ensinam que, ao tocar o shofar, a pessoa utiliza o sopro de seu ser mais íntimo – sua própria alma. É por isso que, em hebraico, as palavras neshamá (alma) e neshimá (respiração) compartilham a mesma raiz. A Torá nos ensina que, ao criar o ser humano, D’us não apenas o formou como as demais criaturas; Ele soprou dentro dele uma alma – um sopro Divino. Em Rosh Hashaná, aniversário desse momento, devolvemos esse sopro por meio do shofar, num ato de anseio espiritual. Seus sons expressam o profundo desejo da alma de se reconectar com sua Fonte.
O shofar não é um instrumento musical, e seu som não é uma melodia. É um clamor sem palavras, vindo das profundezas da alma. No pensamento chassídico, a voz do shofar é comparada ao choro de uma criança que, após se perder, reencontra seu pai. A criança não argumenta nem suplica – apenas chora. Esse choro atravessa o coração do pai e desperta seu amor pelo filho. Da mesma forma, em Rosh Hashaná, é a alma que clama – não com palavras, mas com um choro do seu íntimo mais profundo, que se eleva até os planos mais elevados e desperta a compaixão do Pai Celestial.
O Alter Rebe ensina que os sons do shofar se elevam até Keter Elyon – a “Coroa Suprema” – a mais elevada das Sefirot, os atributos Divinos por meio dos quais D’us cria, sustenta e Se relaciona com a criação. Keter, a Coroa, representa a dimensão mais íntima da vontade Divina – o ponto de origem da motivação para criar o mundo. Quando o shofar é tocado, ele alcança esse plano supremo e atrai uma nova corrente de vitalidade Divina – uma expressão renovada da vontade de D’us que sustenta a existência. Ouvir o shofar, portanto, é muito mais do que um ato simbólico; é um mandamento Divino que, quando cumprido com intenção sincera, nos conecta à própria Fonte da vida e desperta o desejo de D’us de renovar o mundo.
Isso levanta uma pergunta fundamental: que diferença faz para D’us se tocarmos ou não o shofar em Rosh Hashaná? O que aconteceria se ninguém O coroasse como Rei nessa data? D’us é eterno, perfeito e imutável. Ele nada necessita e não é afetado por nada fora de Si mesmo. No entanto, dentro da ordem que Ele próprio estabeleceu, Sua realeza
revelada – Sua vontade de reinar sobre o mundo – foi tornada dependente da nossa escolha. Como ensina o Midrash: “Não há rei sem um povo”. D’us não impõe Sua soberania; Ele nos convida a aceitá-la. É nosso ato consciente de coroá-Lo que faz com que Sua Realeza se manifeste no mundo.
Se ninguém tocasse o shofar em Rosh Hashaná – se ninguém proclamasse a Realeza de D’us nessa data – a Essência Divina permaneceria inalterada. Mas o mundo não seria renovado. Todo o universo se dissolveria no nada, como se jamais tivesse existido.
É por esse motivo que a Torá coloca a mitsvá de ouvir o shofar no centro de Rosh Hashaná. Seus toques alcançam D’us de uma forma que transcende mérito, lógica ou nível espiritual. Ao escutá-los, não nos aproximamos de D’us como suplicantes com argumentos, mas como filhos que retornam ao Pai. Tekiah, shevarim, teruah – o suspiro contínuo, o soluço entrecortado, o choro contido – dão voz ao anseio da alma. São linguagens sem palavras de arrependimento e retorno – expressões profundas do desejo de reconexão com a Presença Divina.
Os sons do shofar não tocam apenas os corações daqueles que os ouvem na Terra – despertando-nos do sono espiritual –, mas também ascendem aos planos mais elevados. Seu clamor ecoa pelo Tribunal Celestial, silencia o Acusador e desperta a compaixão Divina. Como ensina o Midrash, por meio de uma metáfora: quando o Povo de Israel toca o shofar, D’us Se levanta do Trono da Justiça e Se senta no Trono da Misericórdia. Nesse momento, os decretos severos se suavizam, a justiça é temperada com bondade, e um rio de compaixão Divina flui para o mundo.
Essa transformação espiritual está incorporada na própria estrutura das orações de Rosh Hashaná, especialmente na Amidá de Mussaf, que gira em torno de três temas fundamentais: Malchuyot (Realeza), Zichronot (Recordações) e Shofarot (Shofar). Esses não são apenas motivos poéticos – constituem a arquitetura espiritual do dia. Em Malchuyot, proclamamos a soberania de D’us – não como um Monarca distante, mas como o Rei sempre presente, a quem coroamos voluntariamente. Em Zichronot, reafirmamos a aliança eterna de D’us com o Povo de Israel – não para “lembrar” o Onisciente, mas para trazer essa conexão à consciência ativa e à manifestação concreta. Em Shofarot, evocamos o clamor do shofar – um som que proclama a Realeza Divina, que ecoou no Sinai quando D’us Se revelou e nos deu a Torá, e que voltará a ressoar com a vinda de Mashiach, anunciando a redenção final.
De acordo com os ensinamentos da Cabalá e dos Mestres Chassídicos, o som do shofar desperta os Treze Atributos da Misericórdia – as qualidades Divinas de compaixão reveladas a Moshe Rabenu após o pecado do Bezerro de Ouro. Esses atributos transcendem os limites da justiça rigorosa, aproximando D’us de nós com perdão e bondade.
Assim, é essencial que todo judeu – sem exceção – ouça o shofar em Rosh Hashaná. Essa mitsvá não depende de conhecimento, eloquência ou nível espiritual. Basta ouvir com intenção sincera para atrair a compaixão Divina. E como Rosh Hashaná é o Dia do Julgamento – quando é inscrito o destino de cada pessoa para o novo ano –, é por meio do shofar que despertamos a misericórdia do Alto e atraímos a compaixão que nos acompanhará ao longo de todo o ano.
. Uma Festa de 2 Dias Mesmo na Terra de Israel:
Com exceção de Yom Kipur, todas as festas religiosas instituídas pela Torá – conhecidas como Yamim Tovim – são celebradas com um dia adicional na Diáspora. Por exemplo, enquanto Shavuot é comemorado por um dia na Terra de Israel, é observado por dois dias fora dela. Da mesma forma, Pessach dura sete dias em Israel e oito dias na Diáspora.
As razões para o dia adicional de Yom Tov fora de Israel são técnicas – amplamente discutidas no Talmud – e estão além do escopo deste ensaio. De forma resumida, porém, na antiguidade, Rosh Chodesh (o início do novo mês) era estabelecido pelo Sanhedrin, a Suprema Corte Judaica, com base no testemunho de pessoas que haviam avistado a Lua nova. Como o primeiro dia do mês podia recair sobre uma de duas datas possíveis – já que o mês judaico pode ter 29 ou 30 dias –, e como a decisão do Tribunal podia demorar a chegar às comunidades distantes, os judeus da Diáspora passaram a observar cada festividade por dois dias, para garantir que a estivessem cumprindo no dia correto, independentemente de qual das duas datas tivesse sido fixada como Rosh Chodesh.
Embora hoje sigamos um calendário fixo, o costume de celebrar dois dias fora da Terra de Israel permanece – por reverência à tradição e para preservar a continuidade haláchica, ou seja, a observância ininterrupta da Lei Judaica conforme mantida pelas gerações anteriores.
Mas há uma razão mais profunda para a observância de um segundo dia de Yom Tov na Diáspora – uma razão que vai além do aspecto técnico e adentra o campo espiritual. Essa razão se baseia na diferença essencial entre o nível espiritual da Terra de Israel e o das demais terras. Na Terra de Israel – a Terra Santa, Eretz HaKodesh – onde a Presença Divina (Shechiná) Se revela de forma mais aberta, um único dia é suficiente para absorver plenamente a luz espiritual da festividade. Fora da Terra de Israel, no entanto – onde a Revelação Divina é mais oculta e o clima espiritual mais obscurecido –, é necessário um dia adicional para acessar e internalizar a santidade e a iluminação interior do Yom Tov.
Rosh Hashaná é singular entre as festas judaicas, pois sempre foi celebrada durante dois dias completos, inclusive na Terra de Israel. Como mencionado anteriormente, na antiguidade o novo mês era declarado pelo Sanhedrin com base no testemunho de pessoas que haviam avistado a Lua nova. Para as demais festividades, que ocorrem mais adiante no mês, essa incerteza afetava apenas as comunidades distantes, que podiam não receber a confirmação a tempo – levando-as a observar dois dias de Yom Tov.
Já Rosh Hashaná ocorre no primeiro dia do mês de Tishrei – Rosh Chodesh Tishrei – cuja própria santidade dependia diretamente da declaração das testemunhas. Como o Sanhedrin podia confirmar o novo mês apenas ao longo do dia, nem mesmo os que viviam em Israel tinham certeza se aquele dia era, de fato, Rosh Hashaná. Para resolver essa incerteza, os Sábios instituíram que Rosh Hashaná fosse sempre celebrada durante dois dias completos – mesmo na Terra Santa.
Hoje, no entanto, seguimos um calendário fixo, e a incerteza histórica que originalmente justificava o segundo dia de Yom Tov já não se aplica. Como mencionado acima, a continuidade dessa prática na Diáspora está enraizada não apenas na tradição, mas também em uma realidade espiritual mais profunda: fora da Terra de Israel, é necessário um dia adicional para absorver plenamente a santidade da festividade. Isso explica a prática no exterior – mas por que Rosh Hashaná continua sendo celebrada por dois dias completos mesmo em Israel, onde se sabe exatamente quando começa o mês de Tishrei?
Segundo os ensinamentos da Cabalá e do Chassidismo, Rosh Hashaná é celebrada por dois dias mesmo na Terra de Israel porque é uma festividade única – que incorpora dois modos distintos de Revelação Divina. O primeiro dia corresponde à Sefirá de Guevurá – força, retração e julgamento Divinos. É um dia marcado pela reverência e severidade, em que a alma permanece em temor, em julgamento diante do Rei. O segundo dia corresponde à Sefirá de Malchut – Realeza Divina. Nesse dia, a soberania de D’us não é apenas proclamada, mas acolhida e trazida ao mundo. A relação entre D’us e o ser humano se aprofunda: da distância à proximidade; do temor à intimidade reverente; da retração à revelação expansiva da Luz Divina.
No primeiro dia de Rosh Hashaná, a alma se eleva – clamando com anseio, humildade e reverência. No segundo dia, D’us responde a esse clamor. A compaixão Divina desce. D’us adentra o palácio que construímos para Ele – por meio da teshuvá, das nossas preces e do toque do shofar. O que começa como submissão se transforma em conexão. Os dois dias de Rosh Hashaná não são repetições, mas dois estágios de um único e contínuo processo: um movimento sagrado que eleva a alma e renova toda a Criação.
Essa estrutura dupla não é apenas mística, mas também haláchica –enraizada na Lei Judaica. A mitsvá de ouvir o shofar se aplica aos dois dias (exceto quando o primeiro cai em Shabat, ocasião em que o shofar não é tocado), pois cada dia canaliza uma dimensão distinta do poder espiritual da festividade. O primeiro dia desperta o atributo de julgamento no Tribunal Celestial; o segundo o suaviza com misericórdia. O primeiro é o clamor da alma; o segundo, a resposta compassiva de D’us. O primeiro inicia a coroação; o segundo a conduz à sua plenitude.
Mesmo na Terra de Israel, onde a Revelação Divina é incomparavelmente mais intensa do que fora dela, ambas as dimensões de Rosh Hashaná precisam ser vivenciadas. O arco espiritual completo da data – da coroação à renovação, do temor à intimidade – não pode ser condensado em um único dia. O processo se desdobra em etapas: primeiro, a ascensão da alma em reverência e temor; depois, a descida da compaixão Divina. Somente pela integração dos dois dias a transformação pode ser plenamente realizada – e o novo ano verdadeiramente iniciado.
Por isso, é essencial vivenciar plenamente os dois dias de Rosh Hashaná – comparecendo à sinagoga e ouvindo o shofar em ambos os dias. Quando o primeiro dia coincide com o Shabat e o shofar não é tocado, o segundo dia se torna a única oportunidade de cumprir essa mitsvá central, de ouvir o shofar. Ainda assim, mesmo nos anos em que o shofar é tocado nos dois dias, cada dia expressa uma dimensão espiritual única – e ambos devem ser vivenciados com igual seriedade e dedicação.
. Rosh Hashaná e Yom Kipur:
À luz de tudo o que foi exposto neste ensaio, torna-se claro que Rosh Hashaná é muito mais do que o início do ano judaico – é um momento cósmico de julgamento e renovação Divina. Nessa festividade, D’us decide se renovará ou não, por mais um ano, Sua aliança com o mundo.
Por meio dos ensinamentos da Cabalá e do Chassidismo, compreendemos por que Rosh Hashaná – celebrado ao longo de dois dias – é o período mais decisivo de todo o calendário: a própria continuidade da Criação depende dele. E cabe a nós – por meio da teshuvá, das preces e, acima de tudo, do toque do shofar – assegurar que essa renovação aconteça.
Essa é uma das razões pelas quais Rosh Hashaná, apesar do temor reverente que desperta, também é permeada de alegria: é um privilégio profundo estar diante do Rei dos Reis e – por meio da liturgia do dia e, especialmente, ao ouvir os toques do shofar – participar da renovação do mundo por mais um ano.
Ainda assim, os dois dias de Rosh Hashaná são apenas o início: eles inauguram os Dez Dias de Teshuvá, que culminam em Yom Kipur – o Dia da Expiação. Se Rosh Hashaná é o clamor da alma por proximidade com D’us, expresso nos sons comoventes do shofar, Yom Kipur é a resposta Divina – um dia de reconciliação, perdão e renovada intimidade entre o homem e seu Criador. Rosh Hashaná é marcada pela reverência da coroação, quando proclamamos D’us como Rei; Yom Kipur é o momento em que o Rei nos conduz aos Seus aposentos mais íntimos e nos envolve com misericórdia e amor.
A própria existência do mundo – e seu destino no ano que se inicia – está nas mãos de cada um de nós. Nosso desejo mais profundo é que seja um ano de paz, bênção e prosperidade – não apenas para o Povo Judeu, mas para toda a humanidade. Em Rosh Hashaná e Yom Kipur, enquanto os livros celestiais são abertos e a vida de cada um de nós é examinada e pesada, nossa missão se torna clara: que sejamos todos, individual e coletivamente, inscritos e selados no Livro da Vida.
Que todos mereçamos ser considerados justos perante os Céus e inscritos no Sefer shel HaTzadikim – o Livro dos Justos – para que tenhamos uma vida boa e doce neste mundo e a vida eterna no Mundo Vindouro. Amen, ken yehi ratzon.
. Fonte:
Revista Morashá - Edição 128 - Setembro de 2025
Realizada no primeiro e no segundo dia do mês hebraico de Tishrei, essa festa marca o início dos Asseret Yemei Teshuvá (Dez Dias de Arrependimento), também conhecidos como Yamim Nora’im (Dias temerosos), que culminam com Yom Kipur, o Dia da Expiação.
Esses Dias Temerosos são os mais sagrados e espiritualmente significativos do calendário judaico – um período de profunda reflexão e julgamento Divino. Conforme ensina o Talmud, o destino de cada pessoa é inscrito em Rosh Hashaná e selado em Yom Kipur (Talmud Bavli, Rosh Hashaná 16b).
Esta data sagrada não é apenas uma celebração de Ano Novo; Rosh Hashaná é um encontro solene com o Supremo Rei dos Reis. Embora seja marcado por refeições festivas e encontros familiares, é, acima de tudo, uma festa de reverência. Como ensinam os Mestres Chassídicos, em Rosh Hashaná nos aproximamos de D’us com alegria e tremor, pois o destino do mundo está em jogo.
Segundo o Talmud e os ensinamentos da Cabalá, o comportamento da pessoa em Rosh Hashaná influencia todos os dias do ano que está por vir. Por isso, os dois dias de Rosh Hashaná exigem serenidade e atenção – não há espaço para raiva, leviandade ou tristeza. Devem ser vividos com kavaná – uma intenção espiritual focada na oração, nas boas palavras e em uma conduta exemplar. Muitas pessoas aproveitam qualquer momento livre para recitar o Livro de Tehilim – os Salmos –, uma fonte poderosa para se atrair a misericórdia Divina.
Outro motivo pelo qual a festa de Rosh Hashaná é tão significativa é que ela marca um recomeço – para cada um de nós e para o mundo. É uma oportunidade de se começar de novo, como um renascimento, especialmente para quem se sente insatisfeito com a vida que tem levado até o momento. Embora as refeições festivas e os encontros familiares tenham seu valor, eles não são o centro da celebração. Rosh Hashaná é um tempo de despertar – um momento para se parar, refletir e escolher uma nova direção. É um chamado para nos realinharmos com nossos valores mais elevados e retornarmos à Fonte da vida.
Juntamente com Yom Kipur, Rosh Hashaná é a festividade mais amplamente celebrada do calendário judaico. Sinagogas ao redor do mundo ficam lotadas, e a festa é marcada pela saudação tradicional: Shaná Tová Umetuká – “um ano bom e doce”. Curiosamente, porém, a Torá Escrita nunca se refere a Rosh Hashaná como o Ano Novo. Ela não menciona o julgamento Divino, nem o início dos Dias Temerosos. Esses temas fundamentais são revelados pela Torá Oral – por meio do Talmud, do Midrash e dos ensinamentos cabalísticos e chassídicos. Na Torá Escrita, o dia é descrito apenas como Yom Teruá – “um dia de toque do shofar” (Números 29:1; Levítico 23:24).
Isso ressalta uma verdade central do Judaísmo: até mesmo o significado e a forma de cumprir mandamentos fundamentais dependem da Torá Oral. Como explicado no artigo desta edição, “Yom Kipur: teshuvá e perdão”, a Torá Oral não é uma tradição secundária – ela é o alicerce essencial da Halachá (Lei Judaica), do estudo da Torá e da própria vida judaica.
O fato de a Torá Escrita mencionar apenas o shofar, em relação a Rosh Hashaná, revela que o mandamento Divino de ouvir seus toques constitui o cerne da festa. A principal obrigação de Rosh Hashaná não são as refeições festivas nem os alimentos simbólicos, mas ouvir o som do shofar. Rituais guardados com carinho – como mergulhar a maçã no mel ou trocar a saudação Shaná Tová Umetuká – expressam nosso desejo por um ano bom e doce, mas são apenas costumes. O mandamento da Torá é claro e singular: ouvir os sons do shofar.
Por ser uma mitsvá tão central, comunidades judaicas ao redor do mundo – especialmente membros do movimento Chabad – empenham-se ao máximo para garantir que todo judeu possa cumpri-la. Seja em um quarto de hospital, em uma residência particular ou até mesmo em espaços públicos, o shofar é levado até aqueles que não podem comparecer à sinagoga em Rosh Hashaná.
Mas essa centralidade levanta uma questão: por que ouvir o shofar é tão essencial em Rosh Hashaná? Por que a Torá Escrita omite qualquer menção a essa data sagrada como sendo o Ano Novo ou como um Dia de Julgamento, e a define unicamente pelo toque do shofar?
Para compreender isso plenamente, é necessário recorrer à dimensão esotérica da Torá – os ensinamentos da Cabalá e do Chassidismo – que explicam que os sons do shofar não são simples toques, mas o clamor silencioso da alma: um grito que atravessa os Céus, silencia o Acusador Celestial e desperta a compaixão Divina mais profunda.
. A Renovação da Vontade Divina:
Rosh Hashaná não marca a criação do mundo em si, mas sim a criação da humanidade. Comemora o sexto dia da Criação, quando D’us formou Adam e Chavah, Adão e Eva. Embora a liturgia se refira à data como Hayom Harat Olam – “hoje é o dia da concepção do mundo” –, essa expressão reflete o fato de que o ser humano é o propósito e o ápice da Criação. Somente com o surgimento do homem e da mulher o mundo pôde, de fato, começar a cumprir sua missão Divina.
Segundo os ensinamentos do Rabi Yitzhak Luria, o Arizal, posteriormente desenvolvidos pelo Baal Shem Tov e pelo Alter Rebe, Rosh Hashaná não é apenas o aniversário da criação da humanidade. É o dia em que D’us decide se renovará ou não a própria Criação. Como explica o Alter Rebe – Rabi Shneur Zalman de Liadi, fundador da dinastia Chabad-Lubavitch – em sua obra cabalística Shaar HaYichud VehaEmuná (O Portal da Unidade e da Fé), a Criação não é estática; D’us sustenta e recria o universo a cada instante. No entanto, até mesmo essa renovação constante depende de Rosh Hashaná, quando D’us decide se continuará sustentando o mundo por mais um ano.
Embora D’us sustente constantemente a Criação, Sua vontade revelada de fazê-lo é renovada especificamente a cada Rosh Hashaná. Nas horas finais que antecedem a festa, esse
desejo Divino começa a se retrair. A vitalidade da existência enfraquece – a tal ponto que certos Sábios, sintonizados com o estado espiritual do mundo, chegavam a sentir-se fisicamente exaustos, refletindo a contração da energia Divina. Nesse breve intervalo, o mundo persiste apenas como um eco tênue da vitalidade do ano que passou. Então, em Rosh Hashaná, com o toque do shofar e a coroação de D’us como Rei, uma nova vontade Divina é despertada – e a Criação é renovada.
Assim, embora a energia criativa de D’us flua de forma contínua, sua fonte – Sua vontade de criar – é renovada especificamente em Rosh Hashaná. É o momento em que D’us, por assim dizer, reconsidera se deve continuar sustentando o mundo. E Ele escolhe fazê-lo em resposta aos nossos esforços: nossas orações, nossa teshuvá (arrependimento) e nosso anseio de atrair Sua presença para o mundo ao coroá-Lo como nosso Rei.
Por meio dos toques do shofar e das rezas de Rosh Hashaná, um novo ratzon – uma vontade Divina renovada – é despertado das profundezas mais íntimas da Essência de D’us. Não se trata de uma continuação da vitalidade do ano anterior, mas de uma expressão inteiramente nova do desejo do Rei de estabelecer uma relação com o Seu mundo.
Sob essa perspectiva, o tema central de Rosh Hashaná é a renovação do vínculo entre o Criador e Sua criação. D’us aguarda um motivo para escolher o mundo mais uma vez – para nele reinar como Rei e sustentar sua existência. Ao coroá-Lo por meio dos toques do shofar e da liturgia de Rosh Hashaná, não estamos apenas reafirmando nossa devoção, mas participando de um ato cósmico. Não se trata apenas de reconhecer Sua realeza – como fazemos diariamente –, mas de atrair essa soberania ao mundo de forma renovada. Por meio dessa coroação, os canais de bênçãos se abrem, e a Criação recebe uma nova vitalidade para o ano que se inicia.
Isso explica a intensidade espiritual única de Rosh Hashaná. Esses dois primeiros dias do ano são o momento em que o vínculo entre D’us e a Criação é renovado. Cada prece e cada toque do shofar contribuem para esse despertar cósmico. Como ensina a Cabalá, um despertar vindo de baixo provoca um despertar correspondente vindo do Alto. Por meio da nossa devoção – especialmente por meio da mitsvá central de ouvir o shofar – despertamos a vontade de D’us de, mais uma vez, escolher o mundo.
Assim, em Rosh Hashaná, a pergunta não é apenas se o ano que se inicia será bom e doce – mas se existirá. A criação continuará? Isso depende de nós.
. A Importância de Ouvir o Shofar:
Há muitos motivos pelos quais ouvir o shofar é a principal mitsvá de Rosh Hashaná. De acordo com o Talmud, um deles é que seu som confunde o Acusador Celestial – o Satán – e desperta a misericórdia Divina. O Satán atua como promotor no Tribunal Celestial, apontando nossas falhas e transgressões. No entanto, quando o shofar é tocado, sua voz é silenciada – não necessariamente porque tenhamos nos defendido ou provado nosso mérito, mas porque o shofar expressa uma verdade mais profunda do que as palavras podem alcançar.
Nossos Sábios ensinam que, ao tocar o shofar, a pessoa utiliza o sopro de seu ser mais íntimo – sua própria alma. É por isso que, em hebraico, as palavras neshamá (alma) e neshimá (respiração) compartilham a mesma raiz. A Torá nos ensina que, ao criar o ser humano, D’us não apenas o formou como as demais criaturas; Ele soprou dentro dele uma alma – um sopro Divino. Em Rosh Hashaná, aniversário desse momento, devolvemos esse sopro por meio do shofar, num ato de anseio espiritual. Seus sons expressam o profundo desejo da alma de se reconectar com sua Fonte.
O shofar não é um instrumento musical, e seu som não é uma melodia. É um clamor sem palavras, vindo das profundezas da alma. No pensamento chassídico, a voz do shofar é comparada ao choro de uma criança que, após se perder, reencontra seu pai. A criança não argumenta nem suplica – apenas chora. Esse choro atravessa o coração do pai e desperta seu amor pelo filho. Da mesma forma, em Rosh Hashaná, é a alma que clama – não com palavras, mas com um choro do seu íntimo mais profundo, que se eleva até os planos mais elevados e desperta a compaixão do Pai Celestial.
O Alter Rebe ensina que os sons do shofar se elevam até Keter Elyon – a “Coroa Suprema” – a mais elevada das Sefirot, os atributos Divinos por meio dos quais D’us cria, sustenta e Se relaciona com a criação. Keter, a Coroa, representa a dimensão mais íntima da vontade Divina – o ponto de origem da motivação para criar o mundo. Quando o shofar é tocado, ele alcança esse plano supremo e atrai uma nova corrente de vitalidade Divina – uma expressão renovada da vontade de D’us que sustenta a existência. Ouvir o shofar, portanto, é muito mais do que um ato simbólico; é um mandamento Divino que, quando cumprido com intenção sincera, nos conecta à própria Fonte da vida e desperta o desejo de D’us de renovar o mundo.
Isso levanta uma pergunta fundamental: que diferença faz para D’us se tocarmos ou não o shofar em Rosh Hashaná? O que aconteceria se ninguém O coroasse como Rei nessa data? D’us é eterno, perfeito e imutável. Ele nada necessita e não é afetado por nada fora de Si mesmo. No entanto, dentro da ordem que Ele próprio estabeleceu, Sua realeza
revelada – Sua vontade de reinar sobre o mundo – foi tornada dependente da nossa escolha. Como ensina o Midrash: “Não há rei sem um povo”. D’us não impõe Sua soberania; Ele nos convida a aceitá-la. É nosso ato consciente de coroá-Lo que faz com que Sua Realeza se manifeste no mundo.
Se ninguém tocasse o shofar em Rosh Hashaná – se ninguém proclamasse a Realeza de D’us nessa data – a Essência Divina permaneceria inalterada. Mas o mundo não seria renovado. Todo o universo se dissolveria no nada, como se jamais tivesse existido.
É por esse motivo que a Torá coloca a mitsvá de ouvir o shofar no centro de Rosh Hashaná. Seus toques alcançam D’us de uma forma que transcende mérito, lógica ou nível espiritual. Ao escutá-los, não nos aproximamos de D’us como suplicantes com argumentos, mas como filhos que retornam ao Pai. Tekiah, shevarim, teruah – o suspiro contínuo, o soluço entrecortado, o choro contido – dão voz ao anseio da alma. São linguagens sem palavras de arrependimento e retorno – expressões profundas do desejo de reconexão com a Presença Divina.
Os sons do shofar não tocam apenas os corações daqueles que os ouvem na Terra – despertando-nos do sono espiritual –, mas também ascendem aos planos mais elevados. Seu clamor ecoa pelo Tribunal Celestial, silencia o Acusador e desperta a compaixão Divina. Como ensina o Midrash, por meio de uma metáfora: quando o Povo de Israel toca o shofar, D’us Se levanta do Trono da Justiça e Se senta no Trono da Misericórdia. Nesse momento, os decretos severos se suavizam, a justiça é temperada com bondade, e um rio de compaixão Divina flui para o mundo.
Essa transformação espiritual está incorporada na própria estrutura das orações de Rosh Hashaná, especialmente na Amidá de Mussaf, que gira em torno de três temas fundamentais: Malchuyot (Realeza), Zichronot (Recordações) e Shofarot (Shofar). Esses não são apenas motivos poéticos – constituem a arquitetura espiritual do dia. Em Malchuyot, proclamamos a soberania de D’us – não como um Monarca distante, mas como o Rei sempre presente, a quem coroamos voluntariamente. Em Zichronot, reafirmamos a aliança eterna de D’us com o Povo de Israel – não para “lembrar” o Onisciente, mas para trazer essa conexão à consciência ativa e à manifestação concreta. Em Shofarot, evocamos o clamor do shofar – um som que proclama a Realeza Divina, que ecoou no Sinai quando D’us Se revelou e nos deu a Torá, e que voltará a ressoar com a vinda de Mashiach, anunciando a redenção final.
De acordo com os ensinamentos da Cabalá e dos Mestres Chassídicos, o som do shofar desperta os Treze Atributos da Misericórdia – as qualidades Divinas de compaixão reveladas a Moshe Rabenu após o pecado do Bezerro de Ouro. Esses atributos transcendem os limites da justiça rigorosa, aproximando D’us de nós com perdão e bondade.
Assim, é essencial que todo judeu – sem exceção – ouça o shofar em Rosh Hashaná. Essa mitsvá não depende de conhecimento, eloquência ou nível espiritual. Basta ouvir com intenção sincera para atrair a compaixão Divina. E como Rosh Hashaná é o Dia do Julgamento – quando é inscrito o destino de cada pessoa para o novo ano –, é por meio do shofar que despertamos a misericórdia do Alto e atraímos a compaixão que nos acompanhará ao longo de todo o ano.
. Uma Festa de 2 Dias Mesmo na Terra de Israel:
Com exceção de Yom Kipur, todas as festas religiosas instituídas pela Torá – conhecidas como Yamim Tovim – são celebradas com um dia adicional na Diáspora. Por exemplo, enquanto Shavuot é comemorado por um dia na Terra de Israel, é observado por dois dias fora dela. Da mesma forma, Pessach dura sete dias em Israel e oito dias na Diáspora.
As razões para o dia adicional de Yom Tov fora de Israel são técnicas – amplamente discutidas no Talmud – e estão além do escopo deste ensaio. De forma resumida, porém, na antiguidade, Rosh Chodesh (o início do novo mês) era estabelecido pelo Sanhedrin, a Suprema Corte Judaica, com base no testemunho de pessoas que haviam avistado a Lua nova. Como o primeiro dia do mês podia recair sobre uma de duas datas possíveis – já que o mês judaico pode ter 29 ou 30 dias –, e como a decisão do Tribunal podia demorar a chegar às comunidades distantes, os judeus da Diáspora passaram a observar cada festividade por dois dias, para garantir que a estivessem cumprindo no dia correto, independentemente de qual das duas datas tivesse sido fixada como Rosh Chodesh.
Embora hoje sigamos um calendário fixo, o costume de celebrar dois dias fora da Terra de Israel permanece – por reverência à tradição e para preservar a continuidade haláchica, ou seja, a observância ininterrupta da Lei Judaica conforme mantida pelas gerações anteriores.
Mas há uma razão mais profunda para a observância de um segundo dia de Yom Tov na Diáspora – uma razão que vai além do aspecto técnico e adentra o campo espiritual. Essa razão se baseia na diferença essencial entre o nível espiritual da Terra de Israel e o das demais terras. Na Terra de Israel – a Terra Santa, Eretz HaKodesh – onde a Presença Divina (Shechiná) Se revela de forma mais aberta, um único dia é suficiente para absorver plenamente a luz espiritual da festividade. Fora da Terra de Israel, no entanto – onde a Revelação Divina é mais oculta e o clima espiritual mais obscurecido –, é necessário um dia adicional para acessar e internalizar a santidade e a iluminação interior do Yom Tov.
Rosh Hashaná é singular entre as festas judaicas, pois sempre foi celebrada durante dois dias completos, inclusive na Terra de Israel. Como mencionado anteriormente, na antiguidade o novo mês era declarado pelo Sanhedrin com base no testemunho de pessoas que haviam avistado a Lua nova. Para as demais festividades, que ocorrem mais adiante no mês, essa incerteza afetava apenas as comunidades distantes, que podiam não receber a confirmação a tempo – levando-as a observar dois dias de Yom Tov.
Já Rosh Hashaná ocorre no primeiro dia do mês de Tishrei – Rosh Chodesh Tishrei – cuja própria santidade dependia diretamente da declaração das testemunhas. Como o Sanhedrin podia confirmar o novo mês apenas ao longo do dia, nem mesmo os que viviam em Israel tinham certeza se aquele dia era, de fato, Rosh Hashaná. Para resolver essa incerteza, os Sábios instituíram que Rosh Hashaná fosse sempre celebrada durante dois dias completos – mesmo na Terra Santa.
Hoje, no entanto, seguimos um calendário fixo, e a incerteza histórica que originalmente justificava o segundo dia de Yom Tov já não se aplica. Como mencionado acima, a continuidade dessa prática na Diáspora está enraizada não apenas na tradição, mas também em uma realidade espiritual mais profunda: fora da Terra de Israel, é necessário um dia adicional para absorver plenamente a santidade da festividade. Isso explica a prática no exterior – mas por que Rosh Hashaná continua sendo celebrada por dois dias completos mesmo em Israel, onde se sabe exatamente quando começa o mês de Tishrei?
Segundo os ensinamentos da Cabalá e do Chassidismo, Rosh Hashaná é celebrada por dois dias mesmo na Terra de Israel porque é uma festividade única – que incorpora dois modos distintos de Revelação Divina. O primeiro dia corresponde à Sefirá de Guevurá – força, retração e julgamento Divinos. É um dia marcado pela reverência e severidade, em que a alma permanece em temor, em julgamento diante do Rei. O segundo dia corresponde à Sefirá de Malchut – Realeza Divina. Nesse dia, a soberania de D’us não é apenas proclamada, mas acolhida e trazida ao mundo. A relação entre D’us e o ser humano se aprofunda: da distância à proximidade; do temor à intimidade reverente; da retração à revelação expansiva da Luz Divina.
No primeiro dia de Rosh Hashaná, a alma se eleva – clamando com anseio, humildade e reverência. No segundo dia, D’us responde a esse clamor. A compaixão Divina desce. D’us adentra o palácio que construímos para Ele – por meio da teshuvá, das nossas preces e do toque do shofar. O que começa como submissão se transforma em conexão. Os dois dias de Rosh Hashaná não são repetições, mas dois estágios de um único e contínuo processo: um movimento sagrado que eleva a alma e renova toda a Criação.
Essa estrutura dupla não é apenas mística, mas também haláchica –enraizada na Lei Judaica. A mitsvá de ouvir o shofar se aplica aos dois dias (exceto quando o primeiro cai em Shabat, ocasião em que o shofar não é tocado), pois cada dia canaliza uma dimensão distinta do poder espiritual da festividade. O primeiro dia desperta o atributo de julgamento no Tribunal Celestial; o segundo o suaviza com misericórdia. O primeiro é o clamor da alma; o segundo, a resposta compassiva de D’us. O primeiro inicia a coroação; o segundo a conduz à sua plenitude.
Mesmo na Terra de Israel, onde a Revelação Divina é incomparavelmente mais intensa do que fora dela, ambas as dimensões de Rosh Hashaná precisam ser vivenciadas. O arco espiritual completo da data – da coroação à renovação, do temor à intimidade – não pode ser condensado em um único dia. O processo se desdobra em etapas: primeiro, a ascensão da alma em reverência e temor; depois, a descida da compaixão Divina. Somente pela integração dos dois dias a transformação pode ser plenamente realizada – e o novo ano verdadeiramente iniciado.
Por isso, é essencial vivenciar plenamente os dois dias de Rosh Hashaná – comparecendo à sinagoga e ouvindo o shofar em ambos os dias. Quando o primeiro dia coincide com o Shabat e o shofar não é tocado, o segundo dia se torna a única oportunidade de cumprir essa mitsvá central, de ouvir o shofar. Ainda assim, mesmo nos anos em que o shofar é tocado nos dois dias, cada dia expressa uma dimensão espiritual única – e ambos devem ser vivenciados com igual seriedade e dedicação.
. Rosh Hashaná e Yom Kipur:
À luz de tudo o que foi exposto neste ensaio, torna-se claro que Rosh Hashaná é muito mais do que o início do ano judaico – é um momento cósmico de julgamento e renovação Divina. Nessa festividade, D’us decide se renovará ou não, por mais um ano, Sua aliança com o mundo.
Por meio dos ensinamentos da Cabalá e do Chassidismo, compreendemos por que Rosh Hashaná – celebrado ao longo de dois dias – é o período mais decisivo de todo o calendário: a própria continuidade da Criação depende dele. E cabe a nós – por meio da teshuvá, das preces e, acima de tudo, do toque do shofar – assegurar que essa renovação aconteça.
Essa é uma das razões pelas quais Rosh Hashaná, apesar do temor reverente que desperta, também é permeada de alegria: é um privilégio profundo estar diante do Rei dos Reis e – por meio da liturgia do dia e, especialmente, ao ouvir os toques do shofar – participar da renovação do mundo por mais um ano.
Ainda assim, os dois dias de Rosh Hashaná são apenas o início: eles inauguram os Dez Dias de Teshuvá, que culminam em Yom Kipur – o Dia da Expiação. Se Rosh Hashaná é o clamor da alma por proximidade com D’us, expresso nos sons comoventes do shofar, Yom Kipur é a resposta Divina – um dia de reconciliação, perdão e renovada intimidade entre o homem e seu Criador. Rosh Hashaná é marcada pela reverência da coroação, quando proclamamos D’us como Rei; Yom Kipur é o momento em que o Rei nos conduz aos Seus aposentos mais íntimos e nos envolve com misericórdia e amor.
A própria existência do mundo – e seu destino no ano que se inicia – está nas mãos de cada um de nós. Nosso desejo mais profundo é que seja um ano de paz, bênção e prosperidade – não apenas para o Povo Judeu, mas para toda a humanidade. Em Rosh Hashaná e Yom Kipur, enquanto os livros celestiais são abertos e a vida de cada um de nós é examinada e pesada, nossa missão se torna clara: que sejamos todos, individual e coletivamente, inscritos e selados no Livro da Vida.
Que todos mereçamos ser considerados justos perante os Céus e inscritos no Sefer shel HaTzadikim – o Livro dos Justos – para que tenhamos uma vida boa e doce neste mundo e a vida eterna no Mundo Vindouro. Amen, ken yehi ratzon.
. Fonte:
Revista Morashá - Edição 128 - Setembro de 2025
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