2 de setembro de 2008

A Presença Judaica no Brasil – “Anuzim” (Conversos forçados ao Cristianismo)


Comunidades judaicas no Brasil colonial





Sinagoga Kahal Zur Israel no Recife; a mais antiga do Continente Americano 

A invasão de Pernambuco foi minuciosamente planejada e melhor sucedida (14 de Fevereiro de 1630). Parte do sucesso da operação é atribuída à ajuda recebida de Antônio Dias Paparrobalos (judeu que viveu em Pernambuco e fugiu para Amsterdã). Transbordou do estreito círculo dos historiadores a história da primeira comunidade assumidamente judaica no Novo Mundo. A descoberta no Recife e cercanias de Olinda da Rua dos Judeus e, posteriormente, dos remanescentes da sinagoga Zur Israel projetou um episódio circunscrito ao âmbito dos especialistas para a esfera pública e oxigenou-o através da imprensa, literatura e cinema. Cumpre-se assim por força do próprio assunto a indispensável ligação história-historiados. Não caberiam aqui todos os fascinantes pormenores deste episódio que converteu-se num vínculo importantíssimo entre a história do Brasil e a história do judaísmo. Mas é importante registrar que o episódio do Recife, embora efêmero (1630-1654) não aconteceu por acaso. Entrosa-se organicamente com a história dos cristãos novos no Brasil a partir do século XVI sobretudo nos capítulos referentes às Capitanias de Cima (Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba). Como não poderia deixar de ser, entrosa-se também com a história da inquisição ibérica, com a irradiação econômica-cultural de Amsterdã e Hamburgo, desembocando na historia da América Central e do Norte através do estabelecimento no Caribe e Nova York de núcleos de judeus ibero-holandeses fugidos do Nordeste. Pode-se mesmo estabelecer um eixo Recife-Peru percorrido pelos peruleiros (cristãos novos de origem portuguesa que saídos do Brasil procuravam o Vice-Reinado andino, pelo sul, via Rio da Prata ou, segundo algumas hipóteses, pela Amazônia).




Importante registrar que a curta temporada de tolerância no Nordeste constituiu o primeiro interregno na história de uma colonização nitidamente obscurantista. Pode ter sido a inspiração para os movimentos libertários pernambucanos posteriores. A presença holandesa no Brasil é anterior à conquista de Pernambuco. Começa em Maio de 1624 quando uma frota batava dominou as forças luso-espanholas (Portugal então pertencia a Castela) apoderando-se da cidade de Salvador e cercanias.

A ocupação dura apenas um ano (até Abril de 1625) mas é suficiente para excitar as ambições holandesas. Neste período a numerosa comunidade dos cristãos novos baianos que já havia sofrido duas penosas incursões inquisitoriais (Visitações de 1591-1593 e 1618-1620) e, em grande parte, continuava perseverando na sua fé, teve o primeiro contato com a tolerância religiosa proclamada imediatamente após a vitória dos holandeses. Os judaizantes gostaram. A prova está em Lopes de Vega que, para agradar à corte madrilhena, depois de expulsos os holandeses escreveu uma comédia El Brasil Restituido onde há um cristão novo que por temor ao Santo Ofício, adere aos invasores. Acusações contra os judaizantes baianos por suposta adesão ao inimigo constam de diversas denúncias eclesiásticas portuguesas. Há indicações sobre a presença de judeus da Nação Portuguesa entre os ocupantes de Salvador que, não obstante a brevidade da ocupação, conseguiram localizar e aproximar-se dos marranos locais. Arnold Wiznitzer admite que tenham ocorrido cerimônias religiosas judaicas conjuntas levando em conta as denún-cias inquisitoriais sobre as esnogas na Bahia. No documento de capitulação os holandeses exigiram que os judeus portugueses que com eles vieram não fossem molestados. Apesar da cláusula, um membro da nação hebraica, Diogo Lopes Abrantes, foi enforcado sob a acusação de colaboração com o invasor. O castigo imposto a um capitão e cinco oficiais negros acusados do mesmo crime foi ainda pior – esquartejados. A invasão de Pernambuco foi minuciosamente planejada e melhor sucedida (14 de Fevereiro de 1630). Parte do sucesso da operação é atribuída à ajuda recebida de Antônio Dias Paparrobalos (judeu que viveu em Pernambuco e fugiu para Amsterdã) e por dois mulatos que conduziram as tropas desembarcadas a soldo de mercadores cristãos novos do Recife. A vitória holandesa constituiu um alívio para os judaizantes locais preocupados com os constantes rumores de que cogitava-se instalar no Recife o primeiro tribunal permanente do Santo Ofício em terras brasileiras. Uma das primeiras medidas das autoridades holandesas foi garantir a liberdade de consciência. Mas os jesuítas foram expulsos e seus conventos fechados. Em 1632 os holandeses conseguiram penetrar em direção de Itamaracá e Rio Grande do Norte graças à defecção de um mulato, Calabar e, posteriormente de um cristão novo, Manoel de Crasto. Depois, em 1635, obrigados a um pequeno recuo, entregaram os dois “traidores”: Calabar foi executado com o garrote espanhol (colar de aço, ao contrário do português, de tiras de couro) e, como era mulato, foi depois esquartejado (22 de Julho de 1635). Manoel de Crasto, enforcado. Mas quem eram os reais traidores – os dois nativos que ajudaram os holandeses ou os portugueses que se submeteram à dominação espanhola?





A consolidação da ocupação flamenga em 1635 aumentou o fluxo imigratório de Amsterdã. No Conselho Político da Companhia das Índias Ocidentais (gestora dos negócios e operações militares além-mar) começaram a chegar requerimentos da comunidade de Amsterdã solicitando a transferência para Pernambuco. Num deles, os comerciantes David Atias, Jacob e Moysés Nunes, Manoel Mendes Castro (cujo nome judaico era Manuel Nehemias) solicitavam autorização para estabelecer uma colônia com 200 judeus, “ricos e pobres”. Os colonos chegaram em 5 de Fevereiro de 1638 (há 371 anos) mas tendo falecido o seu chefe, dispersaram-se e cada um tomou o seu rumo. Conseqüência do aumento do fluxo migratório foi a criação da sinagoga recifense. Já funcionava antes de 1636 na casa de David Senior Coronel, a sinagoga Kahal Kadosh Zur Israel, Comunidade Santa do Rochedo de Israel. Não é ilusória a hipótese de que o tal rochedo seja uma menção à topografia do litoral. O reverendo calvinista Joannes Baers, contemporâneo, assim descreve a cidade: “o Recife é um arrecife” Coincide com o crescimento da comunidade o estabelecimento da Rua dos Judeus (seguindo o exemplo de Amsterdã com a sua Jodenbreestraat, a Rua Larga dos Judeus). Lá moravam as figuras mais abastadas, inclusive o próprio Senior Coronel (aliás Duarte Saraiva). Formalizada no primeiro semestre de 1636, a sinagoga instalou-se numa casa alugada e, em seguida, em prédio próprio, de pedra e cal, mais condigno (possivelmente entre 1640 e 1641). Segunda sinagoga foi organizada na vizinha cidade de Maurícia (hoje ilha de Antônio Vaz). Não se conhecem as razões que levaram à existência simultânea de dois templos mas admite-se uma das habituais querelas comunitárias. Na primeira sinagoga americana abancou-se o primeiro rabino e autor judeu do Novo Mundo, Isaac Aboab da Fonseca (1605-1693), português de nascimento (Castro Daire, Viseu). Bisneto do último Gaón de Castela, criança ainda foi levado pelos pais à França e, em seguida, para Amsterdã. Ortodoxo, cabalista e, como tantos outros bons judeus naqueles ou nossos dias, caiu vítima da crendice no candidato a messias do momento, no caso Shabetai Tzvi. De Aboab disse o Padre Antônio Vieira (que freqüentou a comunidade de Amsterdã): “Menassé diz o que sabe e Aboab sabe o que diz”. E aqui entra a fascinante figura do rabino Menassé Ben Israel (aliás Manoel Dias Soeiro, 1604-1657) também português, mas madeirense, também levado pelos pais do Porto para La Rochelle e de lá para a Holanda. Poliglota, polígrafo, figura brilhante, manteve contato com as personalidades mais expressivas da vida holandesa (Rembrandt retratou-o diversas vezes). Faz parte (junto com aquele que talvez tenha sido seu discípulo, Bento Spinoza), do grupo que construiu a Idade do Ouro das Províncias Unidas. Menassé foi interlocutor do Padre Vieira com quem compartilhava uma vocação para a convergência não propriamente teológica mas política. Inspirado no Livro de Daniel, Menassé acreditava na dialética da Dispersão-Redenção: quanto mais amplo fosse o espectro do Exílio mais cedo viria a libertação e a salvação. 6 Fiel à sua doutrina, Menassé empenhou-se para que os judeus pudessem estabelecer-se (ou serem identificados) em todos os recantos do mundo. Candidatou-se com entusiasmo ao posto de rabino da comunidade recifense mas divergências internas e/ou animosidades pessoais levaram-no a desistir. Mais tarde, iniciou a Operação Retorno que permitiu a volta dos judeus à Inglaterra de onde estavam banidos desde 1290. A vaga de rabino no Recife foi ocupada por Isaac Aboab da Fonseca cujo messianismo era mais místico. 7 Para compor o perfil de Menassé convém acrescentar um dado decisivo: foi o único dos três rabinos de Amsterdã que não assinou o herem (excomunhão) de Bento Spinoza (Aboab e David Mortera assinaram o documento, 27/7/1656). Qual o tamanho da comunidade judaica do Recife? Magnificou-se o número de judeus recifenses para comprovar sua perniciosa influência. A história de sempre: amplia-se as dimensões do inimigo para mais facilmente satanizá-lo. O terceiro Conde de Ericeira, em “Portugal Restaurado” (Lisboa,1678-79), estimou a comunidade em cinco mil almas. Não chegaram a mil. Mesmo hoje encontramos disparates iguais em círculos acadêmicos: afirmar que a comunidade judaica do Recife foi maior do que a de Amsterdã é desconhecer tanto uma como outra. Na questão quantitativa é preciso ressaltar que a comunidade recifense era basicamente constituída pelos imigrantes oriundos de Amsterdã. A adesão dos marranos de Pernambuco ou Bahia foi reduzida. Compreende-se: o judaísmo da comunidade recifense, embora praticado abertamente e sem constrangimentos, era rígido, penoso. O cripto-judaísmo era mais confortável porque feito às escondidas. Isto verificou-se não apenas naquele período mas estendeu-se ao longo dos tempos prolongando-se até hoje nos casos de cripto-judeus de Belmonte e arredores que recusam o pesado fardo do clericalismo e da ortodoxia. O que interessa efetivamente é a extraordinária composição intelectual do grupo, se comparada com o nível do colonizador português. O Recife judeu contou com advogados, médicos, teólogos e autores. Isaac Aboab da Fonseca, além de primeiro rabino das Américas, é apontado como primeiro autor judeu do Novo Mundo pelo Mi Chamocha, prece composta para descrever as agruras da comunidade durante o sítio imposto pela frota luso-brasileira (v. abaixo). Miguel Cardoso, primeiro advogado judeu no Brasil, viveu no Recife em torno de 1645.10 Rafael Moses de Aguilar, trouxe o título de chacham, era gramático, filósofo e teólogo, deixou 22 cadernos manuscritos em espanhol, português e hebraico que voltaram do Recife para Amsterdã e posteriormente levados para Jerusalém. Sobrinho deste sábio foi o mártir Isaq de Castro Tartas que veio com o tio da Holanda e foi capturado na Bahia quando tentava reconverter marranos ao judaismo (prova de que não acorreram em massa para o Recife Judaico como se pretende). Queimado vivo pela Inquisição em Lisboa (Morashá, dezembro de 2000.





No campo da medicina, embora não tenha produzido nenhuma figura marcante, a comunidade recifense provocou o aparecimento do primeiro estudo médico sobre as doenças e remédios das terras brasileiras – o Tratado Médico Dirigido ao Brasil escrito pelo grande esculápio e autor, Zacuto Lusitano (1575-1642). Redigido em Amsterdã, endereçado a seu filho, Yaqov Zacuto que vivia no Recife como negociante, inaugura a vasta bibliografia brasileira sobre doenças tropicais. Sob o ponto de vista literário, o momento supremo da comunidade marca também o início do seu declínio. A prece-poema Mi Chamocha (Quem como Tu ?), redigida por Isaac Aboab da Fonseca durante o terrível cerco das forças luso-brasileiras em 1646 retrata a fome e o desespero de todos os habitantes do Recife. Testemunhos holandeses são ainda mais dramáticos revelando como a população foi obrigada a alimentar-se de cães e gatos. O cerco foi levantado em 22/6/1646 com a chegada de uma frota flamenga. Selado estava o destino do enclave holandês no nordeste brasileiro e daquela experiência inédita em matéria de liberdade religiosa no Novo Mundo. Impossível mantê-lo com um oceano pelo meio sem um suporte logístico. A rendição final deu-se em 27/1/1654. Os vitoriosos permitiram o retorno de 400 judeus (este deve ter sido o número aproximado de membros da comunidade, poucos judeus arriscar-se-iam a retornar ao terror inquisitorial). O imóvel onde estava à sinagoga foi dado como butim a José Fernandes Vieira, o herói da libertação e posteriormente doado a uma ordem religiosa. Em Setembro daquele ano chegava à Nova Amsterdã, futura Nova York, a nau Sta. Catarina trazendo da Jamaica um grupo de 23 judeus pernambucanos. A Nova Jerusalém transferiu-se ao hemisfério norte.

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